Ário (ou Arius) é uma figura central e polêmica do
cristianismo na virada do século III para o IV depois de Cristo. Não se sabe
exatamente a data nem o local em que esse sacerdote norte-africano nasceu.
Especula-se que possa ter nascido na Líbia entre o ano 250 e 260 d. C. e há uma
pequena evidência de que tenha sido aluno de Luciano de Antioquia (c.235-312),
através do qual teria recebido influências da teologia de Paulo de Samosata (c.
200-275). Essa evidência é a palavrasulloukianista (“discípulo
de Loukiano”) que aparece numa carta de Ário se referindo a si mesmo ao se
dirigir a Eusébio de Nicomédia em busca de apoio nos primeiros anos da
controvérsia que levaria seu nome. Aqui é necessário fazer algumas paradas para
tentar entender essas influências, alertando desde já que resta pouca coisa de
Paulo de Samosata para fazer um juízo de valor conclusivo sobre ele. Luciano de
Antioquia é outro personagem controverso não tanto por suas ideias, mas porque
aparentemente havia dois Lucianos de Antioquia com opiniões contrárias que se
sobrepuseram (e cuja distinção se perdeu) na história, além de ser também
conhecido como Luciano de Samosata (onde nasceu), que tinha um homônimo pagão
do século II a. C., o que também gera confusão. Ao que tudo indica, Paulo de
Samosata cria que Jesus tinha nascido humano e – de alguma maneira
transcendental – Deus Pai tinha, digamos, “infundido” divindade nEle durante
sua existência carnal, numa versão muito particular de adocionismo, que era uma
tentativa humana, marginal na Igreja, de se explicar a presença e a correlação
entre as naturezas humana e divina de Jesus Cristo, e que não foi aceita pela
ampla maioria ortodoxa do cristianismo que considerava a doutrina tão
estapafúrdia que nem se deu ao trabalho de
refutá-la de maneira séria e fundamentada. Foi com esse tipo de inspiração que
Ário foi educado nas sagradas letras, e isso acabou por determinar toda a sua
vida eclesiástica.
Engana-se quem imagina que esta
era uma época de paz e de flores na nascente Igreja Cristã. Os seus quatro
primeiros séculos foram extremamente conturbados, com ideias fortes e
contraditórias se chocando com frequência, o que gerou um ambiente às vezes
muito mais mundano do que se poderia esperar, como ressalta Paul Johnson:
Por via
de regra, porém, os que contendiam com o que viria a ser mais tarde ou já era a
tradição ortodoxa foram enterrados sob uma montanha de linguagem chula
eclesiástica. O odium theologicum não foi uma
invenção cristã. Fazia parte da herança judaica, junto com o conceito de heresia
e o anátema. Como vimos, o tom brando e irenista dos Atos, retratando a Igreja
primitiva como um colegiado de senadores imparciais, movendo-se pacificamente
no sentido de decisões coletivas, desvirtua a realidade que encontramos em
Paulo. Palavras ásperas entre os irmãos em Cristo surgiram cedo, e a partir de
então verificou-se uma inflação contínua da troca de ofensas. No século II, o
debate com os hereges redundava em polêmica, e a magnitude das acusações
ortodoxas e a grosseria de suas ofensas eram, de modo geral, proporcionais ao
sucesso do movimento. Com o recrudescimento da controvérsia, fazia-se
necessário atacar a conduta, não só a doutrina, dos divergentes. Com efeito,
logo desenvolveu-se a teoria de que o erro doutrinário inevitavelmente conduzia
à deterioração moral. Assim, os polemistas ortodoxos podiam inventar e
acreditar nas acusações de boa-fé. As autoridades montanistas foram acusadas de
glutonaria e avareza apenas por receber salários. O ortodoxo Apolônio acusou
Alexandre, discípulo de Montano, de praticar assaltos nas estradas; organizava
festins repugnantes com a profetisa Priscila, e ela era cobiçosa. A acusação
prossegue: “um verdadeiro profeta usa maquilagem? Empresta dinheiro a juros?”.
O que era prática costumeira entre todos os cristãos – chamar as viúvas de
virgens, o pagamento de sacerdotes, o uso de dinheiro para tirar os irmãos
perseguidos das prisões estatais – era, nas seitas heréticas, descrito como
ruim. As seitas que atraíam os maiores volumes de seguidores eram, por via de
regra, as mais austeras e tementes a Deus; contudo, sendo as mais
bem-sucedidas, tinham de ser alvos das mais acres investidas de base moral.[1]
Esse período também foi muito
rico para a igreja porque o cristianismo finalmente passava a se massificar,
absorvendo não somente a população do Império Romano, mas principalmente as
mais altas esferas do poder político, o que , se de um lado livrou-o paulatinamente
da perseguição, por outro lhe trouxe novos desafios, como lembra Justo L.
González:
Estas
novas condições tiveram também suas consequências negativas. Em primeiro lugar,
logo começou uma conversão em massa que inevitavelmente depreciou a profunda
convicção e a vida moral da igreja. Em segundo lugar, a proteção imperial
tornou mais fácil aos poderosos se unirem à igreja e procurarem manter e
exercer seu poder dentro da comunidade da fé. Finalmente, a mesma proteção que
deu aos cristãos a possibilidade de desenvolverem sua teologia a um ponto que
anteriormente era impossível, também implicou na possibilidade de condenação ou
privilégio imperial a uma ou a outra posição teológica. Isto, por sua vez, deu
às controvérsias teológicas uma dimensão política que elas não tinham
anteriormente. É exatamente isso que se passou na controvérsia ariana.[2]
Foi nesta atmosfera conflagrada
por oxigênio puro e gases teológicos tóxicos que Ário formou as suas convicções
sobre o cristianismo. Não só ele, diga-se de passagem, mas a igreja como um
todo. A nova religião cristã via o nascimento do dogma:
A palavra
“dogma” vem, através do latim, da palavra dogma, que derivou
do verbo dokeo. Essa palavra significa pensar. Os dogmas ou
doutrinas formuladas nesse período foram o resultado de pensamento e pesquisa
demorados por parte dos cristãos no afã de interpretarem corretamente o
significado da Bíblia nas questões disputadas e de evitar as opiniões errôneas.
O período é ainda uma boa
ilustração de como um forte zelo pela doutrina pode levar uma pessoa ou uma
igreja involuntariamente ao erro, se não se fizer um estudo equilibrado da
Bíblia. Assim como Sabélio chegou a negar a Trindade essencial ao tentar
salvaguardar a unidade de Deus, Ário descambou para uma interpretação
antibíblica do relacionamento de Cristo com o Pai em sua tentativa de evitar
aquilo que ele considerava o perigo do politeísmo.
Pode-se
indagar por que a controvérsia sobre problemas teológicos ocorreu tão tarde na
história da Igreja antiga; o fato é que, nos tempos da perseguição, a submissão
a Cristo e à Bíblia era mais importante do que o significado de certas
doutrinas. A ameaça do Estado levou a Igreja à unidade interna a fim de se
apresentar coesa na luta. Desse modo, então, a tentativa de Constantino de
unificar o Império para salvar a civilização clássica significou que a Igreja
precisaria ter um corpo unificado de doutrinas se quisesse ser o cimento capaz
de manter unido o corpo político. Um Império precisa de um dogma.[3]
A vitória de Constantino sobre Maxêncio em Ponte
Mílvio, no dia 28 de outubro de 312, foi o coroamento de um período em que a
Igreja Cristã avançava a passos largos por todo o Império e já encontrava,
salvo perseguições localizadas e sazonais (como se verá a seguir), relativa
calma. Era, entretanto, “uma religião rejeitada por 9 décimos de seus súditos”[4],
o que contradiz as teses modernas de conspiração, que – ao se esquecer do
anacronismo de suas análises – querem ver na conversão de Constantino uma
frieza e um calculismo políticos que ele definitivamente não teve. Mais tarde,
o caminho de Constantino se cruzará várias vezes com o de Ário, mas por
enquanto o vemos como provável discípulo de Luciano de Antioquia, que já estará
sob a liderança de Pedro de Alexandria no período em que ele dirigiu a sede
patriarcal egípcia, entre 300 e 311, quando foi decapitado pela repressão de
Diocleciano. Naquela época, Pedro estava preso juntamente com vários outros
líderes durante a última perseguição no Egito, que durou de 303 a 312, e
Melício de Licópolis aproveitou a ausência do patriarca para rejeitar toda e
qualquer reconciliação de cristãos – salvo por rebatismo - que haviam negado a
fé diante da tortura e ameaça de morte, bem como tratou de nomear e ordenar
novos bispos para as sedes vacantes de cada igreja sob a jurisdição de
Alexandria, gerando um cisma na igreja. A princípio, Ário estava do lado de
Melício, mas, nesse ínterim, Pedro foi libertado do cárcere e, antes de ser preso
novamente e martirizado, tomou duras providências contra os cismáticos, que –
excomungados - se reuniram no movimento sectário conhecido por melicianismo,
que continuou forte até seus embates com Atanásio, o outro
grande líder de Alexandria, e – curiosamente – o sucessor de Alexandre, que
seria o maior inimigo de Ário alguns anos depois, mas que - naquele momento
específico do cisma meliciano – não se pode dizer com certeza se Ário já havia
retornado ao seio da ortodoxia altaneira (e mártir) de Pedro. Tudo indica que
isso aconteceu sob o episcopado de Áquila, sucessor de Pedro, que governou a
igreja de Alexandria por um curto período entre 311 e 312, período em que,
segundo as fontes mais confiáveis (mas sem absoluta certeza), Áquila teria
ordenado Ário ao sacerdócio, razão pela qual foi tido muitas vezes (e com pouca
dose de razão) como um ariano precoce. Antes de falecer em 312, Áquila havia
convocado um concílio para 313, exatamente com o fim de resolver as pendências
teológicas que lhe eram confrontadas de um lado por Melício (ainda vivo e
forte), e de outro lado por Ário. São misteriosas, portanto, as razões pelas
quais Áquila ordenou sacerdote uma pessoa que, uma vez investida do cargo,
começaria imediatamente a lhe criar problemas, daí as dúvidas que pairam até
hoje sobre suas reais intenções, se arianas ou não. Como facilmente se percebe,
essa não era uma época propícia a grandes discussões teológicas e filosóficas,
mas Ário já estava prestes a se tornar conhecido como o maior herege da
história da Igreja primitiva:
O vilão
da história (para utilizar a linguagem da ortodoxia) era o arqui-herege Ário,
mas, antes de explicar sua teologia, deve-se dar um rápido esboço das teorias
acerca da posição da Palavra na Divindade aceitas nas primeiras décadas do
quarto século. Precisamos praticamente restringir-nos ao segmento da igreja que
usava a língua grega. São escassos, ou mesmo inexistentes, os dados que mostram
o que teólogos ocidentais pensavam na época, embora seja seguro conjecturar
que, tal como o papa Dionísio algumas gerações antes, eles estavam ocupados
principalmente com a unidade divina e consideravam misteriosas as distinções
dentro da Divindade. Existem mais informações quanto ao Oriente, onde Orígenes
continuava sendo a influência dominante. No que diz respeito à Palavra [ao
Logos], parece que estavam em voga dois tipos de origenismo, um cauteloso e
moderado e outro mais radical. Como expoente do primeiro, podemos citar
Alexandre, bispo de Alexandria entre 313 e 328, que devia ter a
responsabilidade de disciplinar Ário. Um expoente típico da postura mais
radical é Eusébio de Cesareia, o historiador da igreja, cujas opiniões, pelo
menos em sua forma mais moderada, refletiam a atitude de grande número de
clérigos orientais.[5]
Depois da controvérsia meliciana, da morte de Pedro
e Áquila, e da ascensão de Alexandre à sede patriarcal de Alexandria, Ário
continua no seu ofício de sacerdote, sem que se saiba exatamente em que
condição. Por volta do ano 320, Ário era o pastor da igreja de Baukalis (ou
Baucale), uma igreja importante em Alexandria, na qual era muito respeitado e
já vinha desenvolvendo havia alguns anos as suas teorias exóticas sobre a
Encarnação do Verbo. De acordo com fontes posteriores não tão confiáveis,
haveria uma espécie de convento anexo à igreja, com cerca de 70 freiras, mas
esse é um dado digno de nota mais pela curiosidade e pela sugestão implícita de
maldade, já que também o descrevia como um homem alto e esguio, que gostava de
se vestir bem, vaidoso portanto, um dândi de Alexandria segundo a tradição
posterior que não fez esforço algum em evitar que ele fosse ridicularizado e difamado
(talvez com razão). De qualquer maneira, Ário se torna um presbítero popular em
Alexandria, seja pela sua jovialidade, seja pela pregação de suas ideias
revolucionárias. Importante frisar que a base da controvérsia que se seguiu
estava fundada na doutrina da Trindade estabelecida por Orígenes (185-253),
também em Alexandria, pela qual ele declarou que Deus é Pai, Filho e Espírito
Santo, ainda numa formulação incipiente, mas profundamente importante, da
relação entre as Três Pessoas da Unidade Divina, que seria mais tarde
aperfeiçoada por Tertuliano e
pelos pais capadócios, entre tantos outros que colaboraram nesse processo. Para Orígenes, o Filho é
co-eterno e tão divino quanto o Pai, divino “conforme a essência” e não “por
meio de participação” nem por “emanação” de Um em relação ao Outro[6].
Nesta visão, o Espírito Santo procede do Pai e é co-eterno e tão divino quanto
Pai e Filho[7].
Alexandre, então patriarca de Alexandria, era um origenista radical e Ário não
se conformava com essa ideia, conforme demonstra Justo L. González:
Por um lado, é dito que Ário
pertencia à linha de sucessão daqueles origenistas que colaboraram na condenação
de Paulo de Samosata. De acordo com esta interpretação, o ponto de partida do
arianismo é um monoteísmo absoluto, de modo que o Filho não pode ser uma
emanação do Pai, ou uma parte de sua substância, ou um outro ser semelhante ao
Pai, pois qualquer dessas possibilidades ou negaria a unidade ou a natureza
imaterial de Deus. O Filho não pode existir sem um começo, pois dessa forma
seria um “irmão” do Pai, e não um Filho. Por isso, o Filho tem um começo, e foi
criado ou feito pelo Pai do nada. Antes de tal criação, o Filho não existia; é,
portanto, incorreto afirmar que Deus é eternamente Pai. Isso não significa,
contudo, que não existiu sempre um Verbo em Deus, uma razão imanente; mas este
Verbo ou razão de Deus é diferente do Filho, que foi criado mais tarde.
Portanto, quando alguém diz que o Filho é a Sabedoria ou o Verbo de Deus, isto
está correto apenas com base na distinção entre o Verbo que sempre existiu,
como a razão de Deus, e aquele outro Verbo que é “o primogênito de toda a
criatura”. Embora todas as coisas tenham sido criadas por ele, ele próprio foi
feito pelo Pai e é, portanto, uma criatura, e não Deus no sentido estrito da
palavra.
Uma outra
interpretação vê Ário e seus seguidores como defensores de um conceito de
salvação que, na opinião deles, estava sendo ameaçado por Alexandre e seus
colaboradores. De acordo com esta interpretação, Ário e seus “companheiros
lucianistas” estavam preocupados em enfatizar a verdadeira humanidade de Jesus.
Sua divindade deveria ser expressa, não em termos de substância, mas em termos
de vontade – isto é, em termos suscetíveis de imitação e repetição pelos fiéis.
A partir dessa perspectiva, a principal preocupação de Ário era explicar o
salvador em termos tais que o tornassem possível de ser imitado. Para Ário, era
importante que a filiação de Cristo fosse por adoção, de modo que pudéssemos
segui-lo e, assim, fôssemos igualmente adotados. Assim, “o modelo central
ariano foi o de uma criatura perfeita, cuja natureza permanecesse sempre humana
e cuja posição estivesse sempre subordinada e dependente da vontade do Pai”.
Embora seja muito difícil aplicar esta interpretação ao arianismo de tempos
posteriores, parece que na essência do arianismo primitivo está a mesma
preocupação de salvaguardar a humanidade do salvador que foi anteriormente
manifestada por Paulo de Samosata. Isto também explicaria porque desde os
tempos mais antigos o arianismo foi interpretado como a continuação dos ensinos
e preocupações de Paulo de Samosata. Além disso, se interpretarmos o arianismo primitivo
não como uma especulação sobre a Divindade, mas antes como sendo proveniente de
um entendimento particular da obra de Cristo, podemos começar a entender o
apelo que o arianismo teve sobre as massas em Alexandria – apelo normalmente
explicado como resultante meramente da popularidade pessoal de Ário.[8]
Tudo isso implicava em pelo menos 4 pontos
essenciais para se compreender as doutrinas do arianismo: 1) Deus Pai é
absolutamente único e transcendente, do qual não emana (ou se comunica)
divindade alguma; 2) na condição de criatura, o Filho deve obrigatoriamente ter
tido um começo; 3) o Filho não pode ter comunhão alguma de substância com o
Pai; e 4) o Filho deve estar sujeito a mudanças e mesmo ao pecado[9].
Um dos partidários de Ário teria sido, inclusive, surpreendido numa conferência
quando lhe perguntaram se Jesus poderia ter caído junto com o diabo, o que ele
foi obrigado a concordar, já que essa era uma consequência lógica do ensino de
Ário. Ficam claras, portanto, as razões pelas quais Alexandre não podia tolerar
um desafio desse tipo dentro de suas fileiras alexandrinas. Ário tinha,
contudo, um poder de sedução enorme sobre as plateias ignaras e isto gerou
profunda comoção em Alexandria, em que a polêmica, guardadas as devidas
proporções, tomou o vulto de uma briga de torcidas. Ário liderava passeatas
pela cidade cantando “Houve um tempo quando ele não era”, referindo-se a Jesus,
o Verbo encarnado. Diante da provocação, Alexandre convocou um sínodo de bispos
do Egito, que se realizou no ano de 319 (ou 320, segundo outras versões) e ao qual
acorreram 100 prelados da região, que resultou na condenação e excomunhão de
Ário. Este, entretanto, não desistiu. Buscou apoio em bispos de outras regiões,
e o influente Eusébio de Nicomédia foi o que lhe deu abrigo. O outro Eusébio, o
historiador de Cesareia, também lhe deu certo suporte, mas se colocava numa
opinião intermediária entre Ário e Alexandre, embora sem desenvolvê-la a ponto
de que soubéssemos hoje exatamente o que ele pensava a respeito.
Constantino já era o imperador romano inconteste
desde o ano 312, e não podia tolerar que o amálgama do seu vasto império, que
era o cristianismo, tivesse sua solidez ameaçada. Ele envia, então, Ósio de
Córdoba à região na tentativa de mediar a crise, com uma carta pessoal sua
endereçada aos dois principais contendores, em que diz que considerava aquilo
“uma inútil disputa entre teólogos”[10],
mas que não consegue fazê-los chegar a um acordo satisfatório a todas as partes
envolvidas. Diante do impasse, não há outra solução senão convocar o concílio
ecumênico de Niceia, que se realizaria no ano 325 e no qual estariam
representados todos os bispos da cristandade, para se dirimir finalmente a
questão. Agendado o concílio, começa então uma verdadeira guerra diplomática
(para os padrões da época) dentro da Igreja. O próprio Ósio, entretanto,
participaria de um concílio local em Antioquia pouco tempo antes de Niceia, no
qual seriam condenados Eusébio de Cesareia e outros partidários de Ário. Este,
na tentativa de se mostrar humilde e conciliador (o que aparentemente não
correspondia à imagem pública que ele passava), tratou de enviar uma carta a
seu arqui-inimigo Alexandre de Alexandria, um dos poucos escritos de Ário que
sobreviveram, com os seguintes dizeres:
A fé que recebemos de nossos
antepassados e que aprendemos de ti, bem-aventurado pai, é esta: conhecemos um
Deus único não gerado, o único eterno, o único sem princípio, o único
verdadeiro, imortal, o único sábio, o único bom, o único onipotente, o único
juiz, moderador e governador de todas as coisas, imutável e sem
transformação..., que gerou antes dos tempos eternos o seu filho único, por
meio do qual ele fez os séculos e todas as coisas. (Filho) gerado não em
aparência, mas em verdade, subsistente por efeito de sua vontade, imutável e
sem transformação, criatura perfeita de Deus, mas não como uma das criaturas;
criado, mas não como uma das coisas criadas...
Contudo, como dizemos, ele foi
criado com os tempos e antes dos séculos e recebeu do Pai a vida, o ser e os
esplendores de glória. De fato, dando-lhe a herança de todas as coisas, o Pai
não se privou do que tem em si mesmo, de ser sem princípio, porque ele é a
origem de tudo.
Por isso é que há três substâncias:
o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Deus, que é justamente causa de todos os
seres, é de maneira absoluta o único sem princípio. O Filho, gerado pelo Pai
fora do tempo, criado e fundado antes dos séculos, não era antes de ser gerado,
mas, gerado fora do tempo antes de todas as coisas, somente ele foi criado pelo
Pai único. Ele não é eterno, nem coeterno e não partilha o fato de não ser
gerado como e com o Pai. Ele não tem a existência com o Pai, como dizem alguns
de um e de outro, afirmando dois princípios não gerados. Mas como unidade e
princípio de tudo, Deus é antes de todas as coisas. Por isso ele também é antes
de Cristo... Na medida, pois, em que seu ser, sua vida e sua glória, e tudo o
que lhe foi conferido lhe vêm de Deus, Deus é o seu princípio. Ele lhe é
superior como seu Deus e tem seu ser antes dele; ele o recebe de Deus.
(a partir
da tradução de I. Ortiz de Urbina, Nicée et Constantinople,
1963, pp. 252-253)[11]
Alexandre, hábil estrategista
como era e conhecedor dos meandros técnicos e políticos de um concílio, não deu
importância à carta de Ário, pois sabia que a questão seria decidida pelos
bispos que compareceriam a Niceia pouco tempo depois, e aproveitou para lhes
enviar uma carta encíclica ao episcopado explicando a questão central da
polêmica ariana:
Quem
ouviu, alguma vez, semelhantes coisas? Quem, agora que as ouve, não tapará os
ouvidos para impedir que essas ignóbeis palavras cheguem até eles? Quem,
ouvindo João dizer: “No princípio era o Verbo” (Jo 1,1), não condenará os que
dizem “Houve um tempo em que ele não era”? Quem, ainda, ouvindo estas palavras
do Evangelho “Filho único de Deus” (Jo 1,18) e “Tudo foi feito por meio dele” (Jo
1,3), não detestará os eu afirmam que o Filho é uma das criaturas? Como pode
ele ser igual ao que foi feito por ele? Como pode ser Filho único aquele que
elencamos com todas as coisas, na categoria destas?Como viria ele do nada, ao
passo que o Pai diz: “De meu seio, antes da aurora, eu te gerei” (Sl 109,3)?
Como seria ele, em sua substância, diferente do Pai, ele que é a imagem
perfeita e o esplendor do Pai (2 Cor 4,4; Hb 1,3) e que diz: “Quem me vê
vê o Pai” (Jo 14,9)? Se o Filho é o Verbo e a Sabedoria do Pai, como teria
havido um tempo em que ele não existia? É como se dissessem que houve um tempo
em que Deus não tinha Palavra nem Sabedoria. Como está sujeito à transformação
e à alteração aquele que diz de si mesmo: “Eu estou no Pai, e o Pai está em
mim” (Jo 10,38) e “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30), e que disse pelo profeta:
“Vede-me; eu sou e não mudo” (Ml 3,6)? Mesmo que se pense que essa palavra pode
ser dita pelo próprio Pai, seria agora, no entanto, mais oportuno, julgá-la
dita por Cristo, porque, tornado homem, ele não muda, mas, como diz o Apóstolo,
“Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje e pela eternidade” (Hb 13,8). Quem os
leva a dizer que é por nós que ele foi feito, enquanto São Paulo diz: “Para ele
e por ele todas as coisas existem” (Hb 2,10)? Quanto à sua afirmação blasfema
de que o Filho não conhece perfeitamente o Pai, não seria de causar surpresa,
pois, uma vez que eles se decidiram a combater Cristo, desprezam também as
palavras do próprio Senhor que diz: “Como o Pai me conhece, eu também conheço o
Pai” (Jo 10,15).
(a partir
da tradução de I. Ortiz de Urbina, Nicée et Constantinople,
1963, pp. 250-251)[12]
Não há estatísticas exatas sobre o número de bispos
que afluíram a Niceia para o primeiro grande concílio ecumênico da Igreja
Cristã, realizado entre os dias 20 de maio e 25 de agosto de 325. Estima-se
entre 250 a pouco mais de 300 o número de participantes com direito a
participação ativa e a voto nas deliberações. Silvestre I, bispo de Roma, foi
um dos ausentes, mas mandou representantes. Isto se devia basicamente ao fato
de que o cristianismo era majoritário no Oriente e ainda minoritário no
Ocidente. Ário não era bispo e, portanto, não participava do conselho, e seu
representante era seu protetor Eusébio de Nicomédia. No campo contrário,
Alexandre de Alexandria se via em posição de fraqueza não tanto pela oposição
dos arianos, mas porque poucos bispos sabiam exatamente da gravidade do que
iria ser discutido no conclave. Todos, de certa maneira, já estavam preocupados
em formular um dogma que, por descuido de palavras, favorecesse os
sabelianistas, discípulos de Sabélio (falecido em 215 d.C.) que defendiam uma
espécie de unitarismo, em que o Filho e o Espírito Santo seriam “modos” de
manifestação de Deus, e não Pessoas co-substanciais com o Pai entre si, daí
também ser chamado de “modalismo”. Os sabelianistas, por seu lado,
provavelmente perceberam que a posição de Ário era muito mais grave e
potencialmente já condenada, e trataram de não fazer alarde sobre suas próprias
posições, a fim justamente de que pudessem depois distorcer o resultado do
concílio a seu favor, o que por sinal terminou acontecendo. Havia, além disso,
a presença do imperador em pessoa, mostrando a todos que era do seu mais
profundo interesse uma solução pacífica o menos desagregadora possível. Não se
sabe exatamente como é que as sessões de discussão se desenvolveram, mas tudo
indica que Eusébio de Nicomédia tenha feito uma exposição inicial dos ensinos
dele próprio e de seus “companheiros lucianistas” (um eufemismo para “arianos”)
e aí ele foi muito mal ao advogar uma espécie de subordinação do Filho ao Pai,
o que escandalizou a maioria dos bispos presentes. Logo de cara, a causa estava
perdida por uma razão muito simples de entender: se o Filho não era tão Deus
como o Pai, então não houvera sacrifício válido do Salvador, já que qualquer
outra criatura poderia ter sido sacrificada no seu lugar, e isto era um
pensamento em relação a Jesus extremamente ofensivo para a Igreja cristã. Toda
a sua pregação de salvação em Cristo, a prevalecer essa ideia, cairia por
terra. Alexandre havia sido muito melhor diplomata que seus oponentes. Correu
uma versão, depois, de que o jovem Atanásio, então com
30 anos de idade, teria acompanhado seu preceptor Alexandre, tendo sido
inclusive autorizado a falar durante a sessão, o que é difícil que seja
verdade, já que somente os bispos tinham esse direito, mas certamente ele
manobrou muito nos bastidores. A solução encontrada após longos debates foi
estabelecer o Credo (que leva o nome do concílio) em que ficava claro que Jesus
Cristo é “Filho de Deus, gerado do Pai, Unigênito, isto é, da substância do
Pai, deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado,
não-feito, de uma substância com o Pai, mediante o qual todas as coisas vieram
a existir”. Curiosamente a palavra aqui traduzida por “substância” em “da
substância do Pai” vem do grego homoousios (“consubstancial”)
e foi sugerida pelo próprio Constantino. Quase todos os presentes assinaram o
Credo de Niceia, com exceção de Ário e dois bispos líbios (uma das razões pelas
quais se imagina que Ário também era líbio), que foram condenados e exilados na
Ilíria. Eusébio de Nicomédia e Teógnis de Nicéia, que continuaram no erro após
o concílio, depois foram depostos e exilados na Gália. Os livros de Ário foram
queimados em razão dos anátemas proferidos na ocasião: “Os anátemas do concílio
estendiam-se a todos aqueles que alegavam “que houve um tempo em que ele não
existia”; “antes da Sua geração Ele não existia”; “Ele foi feito do nada”; “o
Filho de Deus é de outra subsistência ou substância”; e “o Filho de Deus [é]
criado ou alterável ou mutável”.”[13]
Como a redação do Credo de Niceia permitia que,
além dos sabelianos, outros grupos como os de Eustáquio de Antioquia e de
Marcelo de Ancira (hoje Ancara, capital da Turquia) se sentissem autorizados a
fazerem interpretações muito particulares de seus tipos velados de
monarquianismo, em que o Filho teria algum grau de subordinação ao Pai. Aos
poucos, essas desavenças teóricas foram minando os resultados do Concílio de
Niceia, e por volta do ano 328, Eusébio de Nicomédia e Teógnis de Niceia foram
autorizados a voltarem do exílio. Eusébio tinha amigos próximos na família
imperial, e fazia de tudo para influenciar a visão moderada de Constantino, que
gostava muito de botar panos quentes nas controvérsias eclesiásticas e arranjar
um meio de acomodar todas as correntes antagônicas (e no caso irreconciliáveis)
no seio da Igreja. Os defensores do concílio predominaram por cerca de 5 anos
após o seu término, afinal Roma, Alexandria e Antioquia eram presididas por
fortes apoiadores de suas conclusões. Os arianos trataram, então, de se
movimentarem politicamente e fizeram de tudo para mostrar ao imperador que não
eram tão obstinados assim e queriam contemporizar. Existe a suposição, não
confirmada, de que tenha havido um segundo sínodo em Niceia no ano 327, com
muito menor afluência de bispos, que de alguma maneira teria reabilitado Ário,
o que parece não corresponder à verdade dos fatos[14].
Ário escreveu uma carta ao imperador, dizendo-se pronto a aceitar um
compromisso com a ortodoxia, subscrevendo o Credo de Niceia, fazendo com que
Constantino fosse paulatinamente cedendo aos seus apelos com a ajuda,
suspeita-se, de Constância, meia-irmã do imperador e viúva de Licínio, a quem
Constantino tinha derrotado para unificar o Império no ano 325. Alexandre de
Alexandria, entretanto, morre em 328, sendo sucedido por seu fiel discípulo Atanásio, que se
tornou o maior defensor da fé nicena e um dos grandes pais da Igreja. Diante da
insistência de Constantino em ver Ário reabilitado, Atanásio respondia
que "é impossível reintegrar na Igreja homens que contradizem a verdade,
fomentam a heresia, e contra os quais um concílio geral pronunciou o
anátema". Por sua oposição sistemática a que Ário fosse reintegrado à
igreja de Alexandria, Atanásio é
perseguido pelo imperador e outros bispos arianos, caluniado, punido e exilado
algumas vezes, como no sínodo de Tiro (em 335), presidido pelo bispo então
eusebiano Flacilo de Antioquia (influenciado pelos dois Eusébios, o de
Nicomédia e o de Cesareia), até que, em 17 de setembro de 335, o Sínodo de
Jerusalém resolve restaurar Ário à comunhão, “em presença do imperador
Constantino e dos dois Eusébios, depois dele haver apresentado uma profissão de
fé satisfatória, e exigiu das igrejas de Alexandria e do Egito que dessem o
cisma por encerrado”[15]. O imperador
então determina que Ário reassuma suas funções com outro Alexandre, patriarca
de Constantinopla. Este, contrariado, teria orado fortemente pedindo a Deus que
Ário morresse antes que isso ocorresse. Sintomático que nesse episódio ainda se
vê a mão de Alexandre de Alexandria, 7 anos após sua morte. É que ele - em vida
- havia escrito uma carta ao seu homônimo de Constantinopla na qual fez uma
refutação radical e profundamente convincente do arianismo. A reza na sede do
Império deve ter sido braba, pois na véspera do dia em que isso aconteceria,
Ário morre em condições misteriosas. Alguns historiadores ainda criaram versões
míticas, tentando atribuir sua morte súbita a algum tipo de castigo divino, mas
a causa mais provável, dado os costumes daquele tempo, é que ele tenha sido
envenenado. Como descreve Edward Gibbon, Ário morreu em circunstâncias
"horríveis e estranhas, o que despertou suspeitas de que os santos
ortodoxos tinham contribuído de maneira mais eficaz do que com suas preces para
livrar a Igreja do mais temível dos seus inimigos"[16].
Dois anos depois morreria Constantino. Terminava assim a carreira do maior
heresiarca que a Igreja primitiva conheceu. Sem glória...
Notas
1. Paul Johnson, “História do Cristianismo”. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2001, pp. 66-67
2. Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004. Vol. I, p. 256
3. Earle E. Cairns, “O Cristianismo Através dos Séculos – Uma História da
Igreja Cristã”. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 111
4. Paul Veyne, “Quando Nosso Mundo se Tornou Cristão [312-394]”. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 108
5. J. N. D. Kelly, “Patrística – Origem e Desenvolvimento das Doutrinas
Centrais da Fé Cristã”. São Paulo: Vida Nova, 2009, pp. 169-170
6. Justo L. González, op. cit., p. 212
7. Idem, op. cit., p. 214
8. Ibidem, op. cit., pp. 256-258
9. J. N. D. Kelly, op. cit., pp. 172-173
10. Giuseppe Alberigo (org.), “História dos Concílios Ecumênicos”. São
Paulo: Paulus, 1995, p. 21
11. Jacques Liébaert, “Os Padres da Igreja [Séculos I – IV]”. São Paulo:
Loyola, 2000, vol. 1, p. 138
12. Idem, op. cit., p. 139
13. Walter A. Elwell (org.), “Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã”. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 106
14. Hubertus R. Drobner, “Manual de Patrologia”, Petrópolis: Vozes, 2003,
p. 219
15. Idem, op. cit., p. 219
16. "Declínio e Queda do Império Romano", ed. abreviada. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 1989, p. 291
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