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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O FILHO PRÓDIGO - UMA EXEGESE SOBRE A HISTÓRIA DE UM FILHO QUE DESEJOU A MORTE DE SEU PAI

Este artigo procura fornecer por meio do instrumental exegético e da mediação do conceito de fronteira uma análise do contexto da narrativa parabólica que se encontra no evangelho de Lucas 15. 11-32. Tal parábola evidencia um conflito entre dois grupos em busca da identidade dentro de uma comunidade cristã em Antioquia. 

Uma rápida visão acerca da estrutura de Lc 15. 11-32 O trecho de Lc 15. 11-32 apresenta uma parábola dupla, e cada metade tem a sua estrutura própria. A primeira metade encontra-se nos versículos 11-24 e a segunda nos versículos 25-32. As duas partes são semelhantes, mas diferentes. Bailey organiza essa parábola dupla em estrofes que combinam uma com a outra usando paralelismo invertido ou em degrau e outras correspondências semânticas. Dessa forma,
a estrutura da primeira metade é a seguinte: 

A - Havia um homem que tinha dois filhos 

1 Um filho é perdido (v.12) 

2 Bens gastos com uma vida cara (v.13) 

3 Tudo perdido (v.14) 

4 O grande pecado; cuidar de porcos para os gentios (v.15) 

5 Total rejeição (v.16) 

6 Mudança de mente (v.17) 

6’ Arrependimento inicial (v.18-19) 

5’ Total aceitação (v.20) 

4’ O grande arrependimento (v.21) 


3’ Tudo ganho; restaurado a filiação(v.22) 


2’ Bens usados na alegre celebração (v.23) 

1’ Um filho é achado (v.24). 

A segunda metade é uma repetição da primeira. O princípio da inversão é usado outra vez. Vejamos sua estrutura literária. 

B - Ora, o filho mais velho estava nos campos 

1 Ele vem (v.25, 26) 

2 Teu irmão- ileso- uma festa (v.27) 

3 Um pai vem para reconciliar (v.28) 

4 Queixa I (como me tratas) (v.29) 

4’ Queixa II (como tratas a ele) (v.30)

3’ Um pai tenta reconciliar (v.31) 

2’ Teu irmão- ileso- uma festa (v.32) 

1’ ............................ (faltando) 


As ligações entre as estrofes são claras. No centro apoteótico as duas queixas combinam linha a linha em paralelismo em degrau. Na estrofe 3 o pai vem para reconciliar-se, enquanto que na 3’ ouvimos um discurso de reconciliação. A estrofe 2 é um relatório da festa dado por um rapaz, e em 2’ o pai defende o fato de ter iniciado esses mesmos eventos. O término está faltando: não há estrofe 1’, algo está inacabado.

Não à exclusão 

A porção bíblica de Lc 15.11-32 é uma narrativa parabólica. Tal narrativa trata de um acontecimento de caráter único e não costumeiro o qual é narrado pormenorizadamente. Constata-se uma tendência de apresentar os personagens em determinada relação social (estrutura: superior, inferior; ou direito, subalterno), por exemplo, a figura paterna. Com freqüência são apresentados dois grupos, um dos quais é preciso escolher. O seu fundo literário geral é o gênero das fábulas antigas, na medida que se referem as seres humanos. Muitas dessas fábulas começam, como a parábola de Lc 15.11-32, com "havia um homem". As narrativas parabólicas raramente são autônomas com relação ao contexto e tem amiúde função retórica, argumentativa. Para a apreciação sistemática das parábolas, isso acarreta a necessidade de se prevenir contra a tendência de isolá-las de seu contexto. Tal isolamento teria por conseqüência a superestimação do peso teológico da parábola. Trata-se de problemas fundamentais como a riqueza, a compaixão com os irmãos e com o próximo em geral e a justificação da abertura para pecadores e pagãos. E sempre está em jogo a unidade da comunidade. Não se justifica a oposição daqueles que já estão dentro há mais tempo contra a admissão ou equiparação de novatos menos privilegiados.

Situando o evangelho 

Não há consenso acerca da autoria, do local da composição e da datação do evangelho de Lucas.Diante da impossibilidade de identificação do autor, o mais sensato seria admitir como Kummel que somente uma coisa se pode afirmar com certeza a respeito da sua autoria: trata-se de um cristão proveniente da gentilidade.m relação ao local de autoria, situo este evangelho na cidade de Antioquia, visto que o Livro de Atos guarda uma forte memória da igreja localizada nesta cidade (Atos 11.19-26; 13.1-3) e também por possuir todos os aspectos de uma cidade fronteiriça. Assim como não há consenso quanto a localização do evangelho de Lucas, também não há quanto a sua datação. Mesters o situa em torno do ano de 85.Storniolo entre 80 e 90.No entanto, uma posição mais cautelosa nos leva a datá-lo entre os anos 70 e 90.


Entre dois mundos 

Herdeiro do pensamento paulino anti-romano, o autor de Lucas inverte a cosmovisão de sua época de que Roma seria o centro do mundo habitado e que a Judéia seria apenas um local desprezível nos confins da terra. Para ele o centro ou a "polis" passara a ser a Judéia em detrimento de Roma (asty). Entre estes dois extremos situava-se a cidade de Antioquia (khora), lugar em que provavelmente foi composta a obra de Lucas-Atos e uma região onde as comunidades eram diásporas e as fronteiras na realidade não imobilizavam, mas, curiosamente eram constantemente atravessadas. A obra de Lucas reflete as características de fronteira fluída desta região. Assim, para o autor de Lucas Jerusalém seria a polis, Antioquia a khora e as regiões do mediterrâneo incluindo Roma a asty
Em Antioquia se deu a interseção entre o cristianismo judeu e o cristianismo do mediterrâneo. Este encontro não envolveu apenas pessoas como também raças, continentes e culturas. Por ser uma comunidade fora do controle de Jerusalém, a comunidade de Antioquia representava um cristianismo marginal (não oficial) e, por isso, mais aberto ao mundo do que o cristianismo praticado pela comunidade judaico- cristã. Era uma comunidade mista na qual conviviam no mesmo espaço gentios e judeus, ricos e pobres, homens e mulheres. Por conta disso, havia tensões internas e externas que sacudiam o seio desta comunidade. Os conflitos produzidos no interior da comunidade de Antioquia eram o reflexo da elaboração de fronteirasentre grupos, principalmente entre o cristianismo judaico e o greco-romano. O evangelho de Lucas é o resultado de um processo sincrético que procura resolver estas constantes tensões. 

O conflito na comunidade lucana parece gravitar em torno da aceitação na comunidade de um grupo de pessoas oriundas do mundo gentílico que não cumpriam as exigências das leis de pureza judaicas. Estas leis tinham grande importância porquanto eram símbolos da identidade de grupo dos judeus.10Após a guerra Judaica e a destruição do templo, o conceito de pureza, que era espacial-geográfico, passa a ser ritual. O conceito de sagrado, que era ligado à terra e ao espaço, passa a se ligar, a práticas rituais ligadas a pureza. Assim, a violência e a exclusão eram dirigidas a todos que não cumpriam os princípios de pureza.11 

Em contraste a postura judaica exclusivista, o autor de Lucas nos apresenta parábolas que denunciam tal arbitrariedade e propõe uma inversão da posição dos judeus em relação aos gentios. O cumprimento cego das exigências da lei pelos judeus não alegraria a Deus. A celebração da vinda do reino tomou lugar na participação da mesa de Jesus com os rejeitados, por isso, o zelo excessivo no cumprimento da lei judaica tornou-se uma barreira separando os gentios rejeitados e os judeus contribuindo para ausência deste último grupo na mesa.ejamos, então, o que o texto nos fala. 

Pai e filhos (parte I)  15.11-24

A parábola em estudo inicia no v.11 com um "um certo homem" que era pai de dois filhos. Ao introduzir os dois filhos no início do relato, o autor prepara o leitor para o papel que ambos desempenharão na trama. 

No verso 12 somos confrontados com o filho mais jovem pedindo sua parte da herança. As leis a respeito de tais transações não são muito claras, porém é bastante claro que a pretensão do filho mais novo era desrespeitosa e irregular. De acordo com a lei mosaica que pode ter sido designada para proteger o direito do irmão mais velho contra o favorecimento do filho mais novo, o irmão mais velho tinha direito ao dobro da herança (Dt 21.17). Segundo J. Jeremias havia duas formas de transmissão de posse de pai para filho: por testamento ou por doação entre vivos. Neste último o interessado recebia imediatamente o capital e somente depois da morte do pai recebia o gozo do uso. O filho recebia o direito de posse, seu pai não podia vender os campos, e não o direito de dispor, se o filho vendesse a propriedade, o comprador tomaria posse somente depois da morte do pai. Portanto, o gozo do uso ficava com o pai até a sua morte.

Apesar dessas provisões Sirach, um sábio judeu (190 a. C.) previne contra a prática repartir a herança enquanto o pai ainda está vivo ligando isto a questão da honra do pai.
 Isto nos levanta a suspeita de que tal prática seria comum. No entanto Bailey em sua analise cultural do Oriente Médio demonstra que tal prática era algo irregular ao extremo. Ele admite que o texto de Sirach não demonstra que o procedimento era comum. Antes, reflete a postura predominante da comunidade. Além disso, o texto de Sirach apresenta o pai distribuindo uma herança e não um filho pedindo por ela. De fato, o filho mais novo desejava a morte do pai, porquanto a noção de passar uma herança enquanto alguém estava em boa saúde era algo impensável.[O filho mais novo estava quebrando os laços familiares e tratando o seu pai como se estivera morto. Assim sendo, a resposta do pai no v.12b é muito apropriada, "e ele lhes dividiu a vida 


Dividir a herança enquanto o pai estivesse vivo era um grande insulto e o irmão mais velho deveria recusar a petição de seu irmão e intervir como um conciliador. Por sua vez, o pai cede ao filho a posse e a disposição dos bens demonstrando um ato de amor sem precedente que dá liberdade até para rejeitar a pessoa que ama enquanto o filho mais velho aceita silenciosamente sua parte negando-se a desempenhar o seu papel de conciliador deixando evidente que havia problemas no seu relacionamento tanto com seu pai quanto com seu irmão. Ambos os filhos fracassaram na tentativa de viverem juntos, em unidade com seu pai.

A ação do filho mais jovem relata seu distanciamento e alienação progressiva de sua família, má administração de sua herança e decadência em pobreza e privação. O v.13 nos informa primeiramente que ele ajuntou seus bens e partiu para uma terra distante
. A fim de entendermos este termo é necessário que haja uma compreensão do que viria a ser uma polis grega. Para Chevitarese, a polis era um espaço territorial urbano marcado pela ação e tensão sociopolítica. Apresentava posições marcadamente conservadoras baseadas em relações fundadas nos valores de honra e vergonha. A polis também possuía uma Khora que era sua zona rural a qual fazia fronteira com a asty ou terras marginais. Esta área por causa da imprecisão fronteiriça era um lugar de intensas disputas e um lugar onde as fronteiras eram fluídas.

Ao contrário da polis, nesta zona fronteiriça as posições não eram conservadoras, porquanto refletiam a interação vivida com as outras terras marginais. Nesta zona fronteiriça havia espaço para a ação no manejo da cultura;
Para o autor de Lucas esta "terra distante" representava uma terra gentílica, a própria Antioquia, por ser uma cidade fronteiriça. Além disso, representava a alienação do filho mais novo de sua família. J. Jeremias demonstra que não havia nada de errado com a emigração no primeiro século, devido a fome freqüente na palestina e as condições de vida mais favoráveis nas grandes cidades comerciais, muitas pessoas mudaram-se para o exterior.

Em segundo lugar, o v.13 nos informa que ele gasta rapidamente sua herança "vivendo dissolutamente". Ademais, o começo de uma grande fome levou o jovem a enfrentar grave necessidade. 

Finalmente no v.15, sem o apoio da família, ele procura trabalho com um cidadão local. Trabalhar para um gentio era algo proibido para um judeu (At 10.28), um fato exemplificado pela sua baixa consideração pelos coletores de impostos (Lc 15.1). Desesperado, o jovem aceita alimentar os porcos, animal considerado impuro e, por isso, um trabalho degradante para um judeu (Lev 11.7; Dt 14.8; 1 Mac 1.47). Portanto, esse rapaz se viu forçado a romper com a tradicional prática e vida judaica (sábado, etc.).

O v.16 retrata de forma dramática a completa queda e a desesperada necessidade enfrentada pelo filho mais novo, o fato de ninguém lhe dar comida o levou a desejar satisfazer-se com alfarrobas que os porcos comiam. A necessidade de ter o que comer fez com que o filho mais novo perdesse a sua dignidade e recebesse tratamento pior do que os porcos. Essa era a condição de vida de milhões de pessoas no império. Segundo Crossan, no Mediterrâneo oriental, a luta pelo controle do pouco excedente agrário existente era, em geral, mais impiedosa nos limites das grandes cidades. As vítimas eram, de maneira quase inevitável, os camponeses; e o resultado era a condição crônica de escassez e desnutrição, sempre prestes a se transformar em fome e epidemia. Se existia, a abundância só se encontrava entre os ricos e seus clientes nas cidades. 
É provável que neste ponto da parábola, o autor faz uma crítica ao sistema econômico greco-romano que favorecia uma pequena elite em detrimento da grande maioria da população que vivia na miséria. 
Não há consenso quanto ao que realmente são estas alfarrobas, no entanto, Bailey sugere que seja simplesmente um arbusto no qual os porcos podem cavoucar a terra procurando as suas bagas. Elas podem ser comidas pelo seres humanos, mas é amarga e não tem valor nutritivo. O pródigo não conseguiu encher o estômago com elas. 

No v.17 através de um solilóquio, um dispositivo narrativo comum nas parábolas lucanas, podemos ver diretamente o coração do personagem (ex. Lc 12.17-19). Assim, o rapaz repensa a sua situação, "cai em si" e percebe que é melhor voltar para casa. Porquanto, na casa de seu pai até mesmo os trabalhadores tinham abundância de comida. Para Jeremias a expressão "e caindo em tanto em hebraico como em aramaico aponta para o significado de "converter-se". Aqui a fome do rapaz estimula o arrependimento. Não existe uma dicotomia entre fome e arrependimento. No entanto, existe uma tensão no entendimento representado nas três parábolas de Lucas 15. Nas duas primeiras parábolas, a ovelha e a moeda são simplesmente encontradas, elas não desempenham um papel ativo. Porém, na parábola ora estudada o filho realiza o movimento inicial e é incondicionalmente recebido pelo seu pai. 

O monólogo prossegue no v.18, o rapaz resolve despertar da sua letargia e desespero, isto fica evidente pela expressão "levantar-me-ei e irei". A frase "pequei contra o céu e contra ti" (revela a percepção de que o erro cometido não era apenas contra o seu pai pois ele havia violado o quinto mandamento (Dt 5.16).
O rapaz finaliza seu pensamento no v.19, aqui dominado pela vergonha ele não se vê no direito de ser restaurado como filho e sim como "um dos trabalhadores assalariados"  de seu pai. Sendo assim, no v.20, ele decide levantar e voltar para seu pai. Aqui o ponto de vista muda do filho para o pai. 

Ao avistar seu filho, "porém ainda distante", o pai não se contenta em esperar passivamente, ele corre para encontrá-lo e o abraça calorosamente. Observe que o pai vai ao encontro do filho enquanto estava ainda distante. Na antiga Palestina, o fato de um homem correr era visto como inconveniente ou como uma perda de dignidade. O pai estava preparado a violar tradições para reconciliar e dar boas vindas ao seu filho que se encontrava perdido. 

O caráter do pai é definido pelas expressões "teve compaixão""inclinou sobre seu pescoço"  e "beijou repetidamente", assim, seu coração compassivo, uma compaixão que precede a confissão do seu filho. A atitude amorosa do pai ao abraçar e beijar seu filho considerado imundo, e, conseqüentemente morto pelas leis de pureza judaicas, era uma crítica contra a postura judaica de violência e exclusão dirigida aqueles que não se enquadravam nas regras de pureza. O perdão imerecido era o oposto do que era esperado. Em vez de provar a hostilidade, o rapaz entra na aldeia sob o cuidado e proteção do pai. 

A seguir, o pai passa instrução para que seus servos peguem a melhor túnica, um anel e sandálias para seu filho. É um sinal para o resto da aldeia de que o rapaz será tratado como filho novamente (Gen 41.42; 1 Mac 6.14-15). Ele é um homem livre, um convidado honrado, um filho. A demonstração do extremo amor do pai continua (v.23). 
O pedido para matar um novilho cevado representa o clímax de sua hospitalidade. Para Greg Forbes o verbo "regozijemo-nos" que encerra este versículo é de extrema importância, pois: "aponta para uma celebração comunal, um tema que conecta cada uma das três parábolas deste capítulo. O banquete serve como uma oportunidade para reconciliar o rapaz com a aldeia inteira. Além do que, a celebração e a imagem festiva contrasta com as alfarrobas e ajuda a sublinhar as extremidades do perdido-achado, do pecado-arrependimento e da alienação e restauração. Dando o contexto de perdão-salvação, a imagem aqui pode também carregar ecos do banquete messiânico" ( Lc 13.28-29; 14.15-24).
As palavras do pai no v.24 traduz o motivo da festa "porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado". O jovem rapaz estava culturalmente e fronteiriçamente "morto" nekro.je completamente "perdido" avpolwlw.j, portanto, separado da comunhão da sua família e do amor de seu pai. No entanto, esta situação aparentemente irreversível se reverteu. Por isso, a celebração inicia.

Pai e filhos (parte II) 

A celebração serve como estímulo para a segunda parte da parábola. No verso 25, a cena muda para o filho mais velho que está voltando de seu trabalho no campo. Esta imagem evoca o quadro de um filho ainda em casa, porém distante de seu pai. Ao se aproximar ele ouve a celebração, músicas e dança. Ele chama um dos meninos33 e pergunta o que estava acontecendo (v.26). 

A resposta segue no v.27 "teu irmão está presente, e matou teu pai o novilho cevado, porque em boa saúde o recebeu de volta". No v.28 o filho mais velho irado, pelo rápido perdão oferecido ao seu irmão, recusa entrar na casa para participar da celebração. O imperfeito "queria" capta sua persistente recusa em entrar para juntar-se na celebração. Novamente a trama é caracterizada pela distância e separação entre o filho e o pai. Bailey observa que a ira e a recusa de participar da celebração eram insultos profundos contra o pai diante do público. Contudo, o paralelismo continua quando mais uma vez o pai se humilha ao sair de sua casa para se encontrar com seu filho, uma demonstração de amor inesperado. Em vez de censurar seu filho ele suplica para que entre. O imperfeito "continuava a rogar". A recusa persistente do filho vem ao encontro da persistente suplica do pai.
Aqui no verso 29 o filho mais velho começa a dar forma a sua ira. Em todo o tempo o irmão mais novo se dirige a seu pai respeitosamente "Pai", mesmo em seu solilóquio (v. 12, 18, 21). Entretanto, seu irmão mais velho recusa em reconhecer sua relação com o seu pai e com o seu irmão. Ele abre seu discurso com a palavra "veja"em vez de "Pai". Mesmo assim, o irmão mais velho julgava-se um filho modelo e servidor de seu pai. O uso do verbo "sirvo"demonstra que ele não entendia o que significava a relação entre pai e filho. De fato, ambos os filhos acreditavam de forma errônea que o seu pai os aceitariam por agirem como servos. A ironia lucana transparece na continuação do discurso do filho mais velho. 

Pouco depois de envergonhar seu pai em público, ele alega que nunca havia desobedecido uma só das ordens de seu pai. Indignado, no v.30, ele dirige suas criticas a seu irmão referindo-se de forma depreciativa "este teu filho" preocupando-se apenas com a propriedade desperdiçada com as meretrizes. A palavra "meretrizes" metaforicamente pode assumir o significado de "idolatria (Ap 17.5)". Talvez esta palavra foi inserida aqui não simplesmente para denotar "uma mulher que vende seu corpo", mas, faz menção de forma pejorativa a nação gentílica considerada idolatra e impura pelos judeus. Em sua fala final o filho mais velho novamente demonstra a sua decepção por seu pai ter matado um novilho cevado para festejar o retorno de seu irmão, na sua concepção, este ato demonstrara certa preferência do pai pelo seu filho mais novo. Embora o filho mais velho não tenha se dirigido ao pai de forma respeitosa "Pai", a primeira palavra do pai "filho" demonstra todo o seu afeto por ele (v.31). A sentença quiástica sublinha o relacionamento entre eles: "tu sempre comigo estas e tudo o que é meu é teu." Com efeito, o pai relembra ao filho mais velho que por direito tudo lhe pertence porquanto seu irmão mais novo já havia recebido a sua parte na herança. As ações do pai demonstram o seu amor por ambos os filhos. O novilho cevado não foi morto porque o pai tinha alguma preferência pelo filho mais novo, mas porque ele havia retornado com vida (v.32). Neste mesmo verso o pai não está somente justificando a festa, antes está convidando o seu filho mais velho a juntar-se a celebração. Com a frase "esse teu irmão" o pai enquadra o filho mais velho na mesma categoria do mais novo, eles são irmãos, e relembra o relacionamento que o filho mais velho teimava ignorar (v.30). O mais velho não tem o direito de fazer distinção. Se ele quer tê-lo como pai é mister que também aceite a seu irmão. A parábola não diz qual foi a resposta final do irmão mais velho. Ela deixa em aberto. Caberia ao leitor da parábola a tarefa de dar a resposta. 

Conclusão 

Assim sendo, nas entrelinhas de nosso texto podemos vislumbrar lampejos do contexto em que estava inserida uma comunidade cristã fronteiriça. A atitude do pai amoroso, do filho mais novo e do filho mais velho nos remete respectivamente a ação de Deus, da comunidade greco-romana e da comunidade judaica em Antioquia. Ambas as comunidades tinham posições antagônicas acerca da identidade da comunidade cristã. A proposta mais tolerante da comunidade greco-romana entrava em conflito com as leis de pureza dos judeus cristãos, as quais tornavam a comunidade judaica menos flexível a incorporação de gentios. Os judeus cristãos enrijeceram fronteiras geográficas e mentais que os distanciavam da prática da comunhão de mesa com os gentios da comunidade. Eles queriam evitar qualquer processo de assimilação, porquanto correriam o risco de perder a sua própria identidade. Devido ao conflito gerado na comunidade de Antioquia, o autor lucano apresenta um projeto audacioso e inclusivo para ambos os grupos. Sua intenção era romper as fronteiras que geravam violência e exclusão. Tanto o filho que estava geograficamente longe de Deus quanto o que estava perto desobedeceram ao mandamento divino. O perdão do pai, Deus, seria somente concedido por meio do reconhecimento de tal erro e da comunhão de mesa e, dessa forma, ambos seriam aceitos pelo pai no banquete messiânico.

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Fonte: Blog Meditando na Palavra

domingo, 14 de agosto de 2016

DO SOL INVICTO A JESUS CRISTO: A CONVERSÃO DE CONSTANTINO

Muito já foi escrito e discutido sobre a conversão de Constantino. Pouco depois de ela ter acontecido houve escritores cristãos, como veremos no próximo capítulo, que quiseram mostrar que essa conversão era o ponto culminante de toda a história da igreja. Outros têm dito que Constantino não passava de um político hábil que percebeu as vantagens que poderia obter com uma “conversão” e, por isso, decidiu juntar-se à sua causa do cristianismo.
As duas interpretações são exageradas. Bastar ler os documentos da época para ver que a conversão de Constantino foi bem diferente da conversão comum de um cristão. Quando algum pagão se convertia, ele era submetido a um longo processo de disciplina e ensino, a fim de que houvesse certeza de que o novo convertido entendia e vivia sua nova fé, e então era batizado. O novo convertido, então, seguia seu bispo como guia e pastor, para descobrir o significado da sua fé nas situações concretas da vida.
O caso de Constantino foi bem diferente. Mesmo depois da batalha da Ponte Mílvia, e durante toda a sua vida, Constantino nunca se submeteu em nenhum aspecto à autoridade pastoral da igreja. Ele contava com o conselho de cristãos, como o sábio Lactando (tutor de seu filho Crispo) e o bispo Óssio de Córdoba (seu conselheiro para assuntos eclesiásticos), mas Constantino sempre se reservou o direito de determinar ele mesmo suas atitudes religiosas, pois considerava-se “bispo dos bispos”. Repetidamente, mesmo depois da sua conversão, Constantino participou de rituais pagãos que eram proibidos aos cristãos comuns, e os bispos não levantaram a voz em protesto e condenação, como teriam feito em qualquer outro caso.
O que acontecia não era somente que Constantino era uma pessoa ao mesmo tempo poderosa e irascível. O imperador também, apesar da sua política cada vez mais favorável aos cristãos e das suas afirmações de crer no poder de Jesus Cristo, tecnicamente pelo menos não era cristão, pois não tinha se submetido ao batismo. Constantino, na verdade, só foi batizado no leito de sua morte. De maneira que qualquer política ou edito em favor dos cristãos, da parte do imperador, era recebido pela igreja como um favor feito por um amigo ou simpatizante. Qualquer deslize religioso de Constantino era encarado da mesma perspectiva: como a ação de alguém que não fazia parte do grupo dos fiéis, ainda que fosse simpatizante deles. Uma pessoa assim podia receber conselhos da igreja, mas nunca sua direção ou condenação. Essa situação se encaixava perfeitamente nos propósitos de sua direção ou condenação. Essa situação se encaixava perfeitamente nos propósitos de Constantino e, por isso, ele teve o cuidado de somente se deixar batizar no leito de morte.
Em contrapartida, os que acham que Constantino se converteu simplesmente por oportunismo político estão equivocados por diversas razões. A primeira delas é que essa interpretação é anacrônica demais, alheia aos costumes da época. Até onde sabemos ninguém em toda antiguidade se acertou da questão religiosa com oportunismo político que tem sido característico da idade moderna. Para os antigos, os deuses eram realidades que bem concretas, e mesmo os mais céticos temiam e respeitavam os poderes sobrenaturais. Por isso, pensar que Constantino foi hipócrita ao se declarar cristão, sem crer de fato em Jesus Cristo, é anacronismo. A segunda razão é que na verdade, do ponto de vista puramente político, a conversão de Constantino aconteceu no pior momento possível. Quando Constantino adotou o labarum por emblema, ele estava se preparando para lutar pela cidade de Roma, centro das tradições pagãs, onde seus principais aliados eram os membros da velha aristocracia pagã, que se consideravam oprimidos por Magêncio. A maior força numérica do cristianismo não estava no Ocidente, onde Constantino governava e lutava contra Magêncio, mas no Oriente, para onde sua atenção seria dirigida somente anos mais tarde.
Por último, a opinião oportunista é equivocada, porque o grau de apoio que os cristãos poderiam ter prestado a Constantino era muito duvidoso. A igreja sempre tivera dúvidas sobre se os cristãos poderiam prestar serviço militar e, por isso, o número de cristãos no exército era pequeno. Entre a população civil, a maioria dos cristãos fazia parte da classe baixam que não poderia dar muito apoio financeiro às intenções de Constantino. E, de qualquer forma, depois de quase três séculos de medo do Império, ninguém poderia predizer qual seria a reação dos cristãos diante do fenômeno inesperado de um imperador cristão.
O mais certo parece ser que Constantino cria mesmo no poder de Jesus Cristo. Essa afirmação, entretanto, não implica que o imperador entendesse sua nova fé como os muitos cristãos que tinham entregue sua vida por ela a entendiam. Para Constantino, o Deus dos cristãos era um ser extremamente poderoso, que estava disposto a ajuda-lo sempre e quando ele favorecesse aos seus fiéis. Quando Constantino, portanto, começou a construir igrejas e a proclamar leis favoráveis ao cristianismo, ele não estava tanto buscando o favor dos cristãos, mas o de Deus. Esse Deus lhe tinha dado a vitória em Ponte Mílvia, e muitas outras que se seguiram. Em certo sentido, a fé de Constantino era semelhante à de Licínio, que disse aos seus soldados que o labarum de Constantino possuía certo poder sobrenatural, e que todos deveriam temê-lo. A diferença era que Constantino tinha se apropriado desse poder, servindo a causa dos cristãos. Essa interpretação encontra apoio nas declarações do próprio Constantino que a história conservou, mostrando-nos um homem sincero cuja compreensão do evangelho era reduzida.
Constantino interpretava a fé em Jesus Cristo de uma maneira que não o impedia de adorar a outros deuses. Seu pai já tinha sido devoto do Sol Invicto. Esse era um culto ao Deus Supremo, cujo símbolo era o Sol, mesmo não negando a existência de outros deuses. Parece que Constantino, durante boa parte da sua carreira política, pensou que o Sol Invicto e o Deus dos cristãos eram o mesmo ser, e que os outros deuses também eram reais e relativamente poderosos, apesar de serem divindade subalternas. Por essa razão, Constantino podia consultar o oráculo de Apolo, aceitar o título de sumo sacerdote dos deuses tradicionalmente conferido aos imperadores e participar de cerimônias pagãs de todos os tipos, sem pensar com isso estar traindo ou abandonando o Deus que lhe teria dado a vitória e o poder.
Além disso, Constantino era um político hábil. Ele tinha tanto poder que podia favorecer os cristãos, construir igrejas e até apossar de algumas imagens de deuses para mandá-las para Constantinopla. Mas, se ele quisesse suprimir todo o culto pagão, o imperador imediatamente teria de enfrentar uma oposição irresistível. Os velhos deuses não estavam totalmente esquecidos. A velha aristocracia e as extensas zonas rurais ainda não tinham sido atingidas pela pregação cristã. No exército havia muitos seguidores de Mitra e de outros deuses. A Academia de Atenas e o Museu de Alexandria, os dois grandes centros de estudo da época, dedicavam-se ao ensino da velha sabedoria pagã. Querer suprimir tudo isso através de um mandato imperial era impossível – ainda mais porque o imperador não via nenhuma contradição entre o Sol Invicto e a fé cristã.
A política religiosa e Constantino segui processo lento, mas constante. O mais provável é que isso não foi causado somente por exigência das circunstâncias, mas também por um progresso interno no próprio Constantino, à medida que ele deixava atrás de si a velha religião e compreendia melhor o alcance da nova. No começo, Constantino se limitou a garantir a paz da igreja, e a devolver-lhe as propriedades que haviam sido confiscadas durante a perseguição. Pouco depois, ele começou a apoiar a igreja mais decididamente, como, por exemplo, doando-lhe o palácio de Latrão, em Roma, que pertencia à família de sua esposa, e ordenando que os bispos que se dirigiam para o sínodo de Arles, em 314, utilizassem os meios de transporte imperiais, sem nenhum ônus para a igreja. Ao mesmo tempo, entretanto, ele tentava manter boas relações com os devotos dos cultos antigos e, particularmente, com o Senado romano. O Império oficialmente era pagão, e correspondia a Constantino, como cabeça do Império, o título de sumo sacerdote.  Negar-se a aceitá-lo seria rejeitar de forma súbita todas as antigas tradições do Império – e Constantino não estava disposto a tanto. Até 320, as moedas de Constantino frequentemente apresentavam símbolos e os nomes dos velhos deuses, ainda que muitas já contivessem também o monograma de Cristo.
A campanha de Licínio deu a Constantino uma nova oportunidade de aparecer como defensor do cristianismo. Era precisamente nos territórios que antes tinham pertencido a Licínio que a igreja era numericamente mais forte. Por isso, Constantino pôde nomear vários cristãos para cargos elevados na máquina administrativa do governo, e até pareceu que ele favorecia os cristãos, em detrimento dos pagãos. Ao mesmo tempo, suas desavenças com o Senado romano aumentavam, sendo que este até mesmo empreendeu uma campanha para reavivar a antiga religião, de modo que Constantino se sentiu cada vez mais inclinado a favorecer os cristãos.
Em 324, um imperial ordenou que todos os soldados adorassem o Deus supremo no primeiro dia da semana. Esse era o dia em que os cristãos celebravam a ressurreição do seu Senhor, mas era também o dia dedicado ao culto do Sol Invicto, e, por isso, os pagãos não podiam opor-se ao edito. No ano seguinte, 325, reuniu-se em Niceia a grande assembleia de bispos conhecida como o primeiro concílio ecumênico. Essa assembleia foi convocada por Constantino, e os bispos viajaram às extensas do tesouro imperial.
Já vimos como a fundação de Constantinopla foi um passo adiante nesse processo. Já o fato de criar um “nova Roma” em si era uma tentativa de fugir do poder das velhas famílias pagãs da aristocracia romana. Mas principalmente a política de utilizar os tesouros artísticos dos templos pagãos para a construção de Constantinopla fez com que o velho paganismo, até então rodeado de riquezas e pompa, ficasse cada vez mais pobre. É verdade que durante o governo de Constantino foram construídos e restaurados alguns templos pagãos. Em termos gerais, porém, os santuários pagãos perderam muito do seu esplendor ao mesmo tempo em que eram construídas enormes e suntuosas igrejas cristãs.

Apesar de tudo isso, Constantino continuou se comportando, até quase o fim dos seus dias, como sumo sacerdote do paganismo. Quando ele morreu, seus três filhos, que lhe sucederam não se opuseram ao desejo do Senado de divinizá-lo, e assim surgiu o fato bizarro de que Constantino, que tanto tinha feito de mal ao culto pagão, passou a ser um dos seus deuses.

Fonte: GONZALES, Justo - História Ilustrada do Cristianismo

terça-feira, 28 de junho de 2016

A PLENITUDE DOS TEMPOS

Os primeiros cristãos – entre eles Paulo – não criam que o tempo e o lugar do nascimento de Jesus foram deixados ao acaso. Pelo contrário, eles viam a mão de Deus preparando o advento de Jesus em todos os acontecimentos anteriores ao Natal e em todas as circunstâncias históricas que o rodearam. O mesmo pode ser dito do nascimento da igreja, que é o resultado da obra de Jesus. Deus havia preparado o caminho para que os discípulos, uma vez recebido o poder do Espírito Santo, pudessem ser suas testemunhas “em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, até os confins da terra” (At 1.8).
Portanto, a igreja nunca foi uma comunidade desprovida de todo contato com o mundo exterior. Os primeiros cristãos eram judeus do século I, e como judeus escutaram e receberam o evangelho. Depois, a nova fé foi se propagando, tanto entre os judeus que viviam fora da Palestina como entre os gentios que viviam no Império Romano e ainda fora dele. Em consequência, a fim de compreender a história da igreja em seus primeiros séculos, devemos primeiro observar o mundo em que a igreja se desenvolveu.

O Judaísmo na Palestina

Palestina, a região onde o cristianismo deu os primeiros passos, foi sempre uma terra sofrida. Em tempos antigos, isso se deveu principalmente a sua posição geográfica, que a colocava na encruzilhada das grandes rotas comerciais que uniam o Egito à Mesopotâmia, e a Arábia à Ásia Menor. Por toda história do Antigo Testamento, essa estreita faixa de terreno se viu cobiçada e invadida, umas vezes pelo Egito, e outras pelos grandes impérios que surgiram na região da Mesopotâmia e Pérsia. No século IV a.C., um novo contendente entrou na arena: Alexandre e suas hostes macedônicas. Ao derrotar os persas, Alexandre se fez dono da Palestina. Ele morreu em 323 a.C., seguindo-se então longos anos de instabilidade política. A dinastia dos Ptolomeus, fundada por um dos generais de Alexandre, apoderou-se do Egito, enquanto os Selêucidas, de semelhante origem, dominaram a Síria. De novo, a Palestina resultou ser a maçã da discórdia nas lutas entre Ptolomeus e Selêucidas.
As conquistas de Alexandre tiveram uma base ideológica. O propósito de Alexandre não era simplesmente conquistar o mundo, mas unir toda a humanidade sob uma mesma civilização de tonalidade marcadamente grega. O resultado disso foi o helenismo, que tendia a combinar elementos puramente gregos com outros tomados das diversas civilizações conquistadas. Ainda que o caráter preciso do helenismo tenha variado de região em região, em termos gerais foi a bacia oriental do Mediterrâneo que lhe deu uma unidade que serviu primeiro à expansão do Império Romano e depois à pregação do evangelho.
Mas o helenismo não era uma bênção para os judeus. Visto que parte da ideologia helenista consistia em equiparar e fundir os deuses de diversos povos, os judeus viam no helenismo uma ameaça à fé no Deus único de Israel. Por isso, a história da Palestina, desde a conquista de Alexandre até a destruição de Jerusalém em 70 d.C., pode se ver como um conflito constante entre as pressões do helenismo, por um lado, e a fidelidade dos judeus a seu Deus e suas tradições, por outra.
O ponto culminante dessa luta foi a rebelião dos Macabeus. Primeiro, o sacerdote Matias e, depois, três de seus filhos, Jônatas, Judas e Simão, rebelaram-se contra o helenismo dos Selêucidas, que pretendiam impor deuses pagãos entre os judeus. O movimento teve algum êxito. Mas já João Hircano, o filho de Simeão Macabeu, começou a se amoldar aos costumes dos povos circunvizinhos e a favorecer as tendências helenistas. Quando alguns dos judeus mais austeros se opuseram a essa política, deflagrou-se a perseguição. Por fim, em 63 a.C., o romano Pompeu conquistou o país e depôs o últimos dos Macabeus, Aristóbulo II.
A política dos romanos era, em geral, tolerante em relação à religião e aos costumes dos povos conquistados. Pouco tempo depois da deposição de Aristóbulo, os romanos devolveram aos descendentes dos Macabeus certa medida de autoridade, dando-lhes os títulos de sumo sacerdote e etnarca. Herodes nomeado rei da Judéia pelos romanos em 40 a.C., foi o último governante com certa ascendência macabeia, pois sua esposa era dessa linhagem.
Mas até a própria tolerância dos romanos não podia compreender a obstinação dos judeus, que insistiam em render culto somente a seu Deus e se rebelavam ante a menor ameaça contra a sua fé. Herodes fez todo o possível para introduzir o helenismo no país. Com esse propósito, fez construir templos em honra a Roma e a Augusto em Samaria e Cesareia. Porém, quando se atreveu a colocar uma águia de ouro na entrada do Templo, os judeus se sublevaram e Herodes teve que recorrer à violência. Seus sucessores seguiram a mesma política helenizante, fazendo construir novas cidades de estilo helenista e trazendo gentios para viverem nelas.
Por essa razão, as rebeliões sucederam quase initerruptamente. Jesus era menino quando os judeus se repelaram contra o etnarca Arquelau, que teve que recorrer às tropas romanas. Essas tropas, sob o comando do general Varo, destruíram a cidade Séforis, capital da Galiléia e vizinha de Nazaré, e crucificaram ali mil judeus. É a essa rebelião que se refere Gamaliel ao diz que, “nos dias do recenseamento, surgiu Judas, o Galileu, e desencaminhou muitos que o seguiram” (At 5.37). O partido dos Zelotes, que se opuseram tenazmente ao regime romano, continuou existindo depois das atrocidades de Varo, e cumpriu papel importante na grande rebelião que irrompeu em 66 d.C. Essa rebelião foi, talvez, a mais violenta de todas, e conduziu em suas consequências, à destruição de Jerusalém em 70 d.C., quando o general – e depois imperador – Tito conquistou a cidade e derrubou o Templo.
Em meio a tais lutas e tentações, não é de se estranhar que o judaísmo se tenha tornado cada vez mais legalista. Era necessário que o povo tivesse diretrizes claras acerca de qual deveria ser sua conduta em diversas circunstâncias. Os preceitos detalhados dos fariseus não tinham o propósito de fomentar religião puramente externa – ainda que às vezes tenham tido esse resultado –, mas, antes, procuravam aplicar a Lei às circunstâncias que o povo vivia.
Os fariseus eram o partido do povo, que não desfrutava das vantagens materiais acarretadas pelo regime romano e helenista. Para eles, o importante era assegurar-se de cumprir a Lei, mesmo nos tempos difíceis que estavam vivendo. Ademais, os fariseus criam em algumas doutrinas que não tinham apoio nas mais antigas tradições dos judeus, como a ressurreição e a existência de anjos.
Os saduceus, por sua parte, eram o partido da aristocracia, cujos interesses os levavam a colaborar com o regime romano. Visto que o sumo sacerdote pertencia geralmente a essa classe social, o culto do Templo ocupava para os saduceus a posição central que a Lei tinha para os fariseus. Além disso, aristocratas e conservadores como eram, os saduceus rejeitavam as doutrinas da ressurreição e a da existência de anjos, que, segundo eles, eram meras inovações.
Portanto, devemos cuidar de não exagerar a oposição de Jesus e dos primeiros cristãos ao partido dos fariseus. De fato, quase todos eles estavam mais perto dos fariseus que dos saduceus. A razão pela qual Jesus os critica não é então por terem sido maus judeus, mas que, em seu afã de cumprir a Lei ao pé da letra, esqueciam-se às vezes dos seres humanos a quem a Lei fora dada.
Além desses partidos, que ocupavam o centro da cena religiosa, havia outras seitas e outros bandos no judaísmo do século I. Já mencionamos os zelotes. Os essênios, a quem muitos autores atribuem os famosos “rolos do mar Morto”, eram um grupo com ideias puristas, que se apartava de todo contato com o mundo dos gentios, a fim de manter sua pureza ritual. Segundo o historiador Josefo, esses essênios sustentavam, além das doutrinas tradicionais do judaísmo, certas doutrinas secretas que lhes estavam vedadas revelar a quem não fosse membro da seita.
Por outra parte, toda essa diversidade de tendências, partidos e seitas não há de ofuscar os pontos fundamentais que todos os judeus sustentavam em comum: o monoteísmo ético e a esperança escatológica.
O monoteísmo ético sustentava que há um só Deus e que este Deus requer, além do culto apropriado, a justiça entre os seres humanos. Os diversos partidos podiam estar em desacordo com respeito ao que essa justiça queria dizer em termos concretos, mas todos concordavam quanto à necessidade de honrar ao Deus único com a vida toda.
A esperança escatológica era o outro ponto comum da fé de Israel. Todos, dos saduceus aos zelotes, guardavam a esperança messiânica e criam firmemente que chegaria o dia de Deus interferir na história para restaurar Israel e cumprir suas promessas de um Reino de paz e justiça. Alguns criam que seu dever estava em acelerar a chegada desse dia recorrendo às armas. Outros diziam que tais coisas deviam ser deixadas exclusivamente nas mãos de Deus. Mas todos concordavam em sua visão dirigida em direção ao futuro, quando se cumpririam as promessas de Deus.
De todos esses grupos, o mais apto para sobreviver depois da destruição do Templo era o dos fariseus. Efetivamente, essa seita tinha suas raízes na época do exílio, quando os judeus não podiam chegar ao Templo para adorar, e, portanto, sua fé se centralizava na Lei. Durante os últimos séculos antes do advento de Jesus, o número de judeus que viviam em terras longínquas aumentava de forma constante. Tais pessoas, que não podiam visitar o Templo senão em raras ocasiões, viam-se obrigadas a centralizar a sua fé na Lei e não no Templo. Em 70 d.C., a destruição de Jerusalém deu o golpe de misericórdia no partido dos saduceus. Portanto, o judaísmo que o cristianismo conheceu através de quase toda a sua história vem da tradição farisaica, assim como o judaísmo que existe em nossos dias.

 O Judaísmo da Dispersão

Como já assinalamos, houve um número cada vez maior de judeus que viviam fora da Palestina durante os séculos que precederam o advento de Jesus. Alguns desses judeus eram descendentes dos que haviam ido ao exílio na Babilônia; nessa cidade, portanto, como em toda a região da Mesopotâmia e Pérsia, havia fortes contingentes judeus. No século I as colônias judaicas em Roma e em Alexandria eram bem numerosas. Em quase todas as cidades do Mediterrâneo oriental havia pelo menos uma sinagoga. No Egito, chegou-se até a construir um templo por volta do século VII a.C. na cidade de Elefantina, e houve-se outro no Delta do Nilo no século II a.C. Mas em geral esse judeus, chamados de “da Dispersão” ou da “Diáspora”, não construíram templos nos quais podiam oferecer sacrifícios, mas antes sinagogas nas quais estudavam as Escrituras.
O judaísmo da Diáspora é de suma importância para a história da igreja cristã, pois foi através dele, segundo veremos no próximo capítulo, que a nova fé se estendeu mais rapidamente pelo Império Romano. Além disso, esse judaísmo proporcionou à igreja a propaganda religiosa. Esse judaísmo se distinguia de seu congênere na Palestina, principalmente por duas características: seu uso do idioma grego e seu contato inevitavelmente maior com a cultura helenista.
Na Palestina do século I e em toda a região do oriente desse país, havia muitos judeus que já não usavam o antigo idioma hebreu, mas o aramaico. Os judeus que se achavam dispersos por todo o restante do Império Romano falavam o grego. Depois das conquistas de Alexandre, o grego veio a ser a língua franca da bacia oriental do Mediterrâneo. Judeus, egípcios, cipriotas e até os romanos utilizavam o grego para comunicar-se entre si. Em algumas regiões – especialmente no Egito –, os judeus perderam o uso da língua hebraica, e foi necessário traduzir suas Escrituras ao grego.
Essa versão grega do Antigo Testamento recebeu o nome de “Septuaginta”, que se abrevia frequentemente mediante o número romano LXX. Esse nome – e número – provém de uma antiga lenda segundo a qual Ptolomeu II Filadelfo, rei do Egito, ordenou a 72 anciãos hebreus que traduzissem a Bíblia independentemente, e todos eles produziram trabalhos idênticos entre si. Ao que parece, o propósito dessa lenda era garantir a autoridade dessa versão, que foi, de fato, produzida ao longo de vários séculos, por tradutores com distintos critérios, de modo que algumas proporções excessivamente literais, enquanto outras tomam liberdades indevidas com o texto.
Em todo o caso, a importância da Septuaginta foi enorme para a igreja cristã primitiva. Essa é a Bíblia que a maioria dos autores do Novo Testamento cita, e exerceu influência indubitável sobre a formação do vocabulário cristão dos primeiros séculos. Ademais, quando aqueles primeiros crentes se esparramaram por todo o Império com a mensagem do evangelho, eles encontraram na Septuaginta instrumento útil para sua propaganda. De fato, o uso que os cristãos fizeram da Septuaginta foi tal e tão efetivos que os judeus se viram obrigados a produzir novas versões, como a de Áquila, e a deixar os cristãos na posse da Septuaginta.
A outra marca distinta do judaísmo da Dispersão foi o seu inevitável contato com a cultura helenista. Em certo sentido, poderia se dizer que a Septuaginta é também o resultado dessa situação. Em todo o caso, fica claro que os judeus da Dispersão não podiam se esquivar do contato com os gentios, como podiam fazer em certa medida seus correligionários da Palestina. Os judeus da Dispersão viam-se obrigados, em consequência, a defender sua fé a cada passo diante daquelas pessoas da cultura helenista, para quem a fé de Israel era ridícula, antiquada ou ininteligível.
Diante dessa situação, e especialmente na cidade de Alexandria, surgiu entre os judeus um movimento que tratava de mostrar a compatibilidade entre o melhor da cultura helenista e a região hebraica. Já no século III a.C., Demétrio narrou a história dos reis de Judá seguindo os padrões da historiografia pagã. Mas foi na pessoa de Filo de Alexandria, contemporâneo de Jesus, que esse movimento alcançou o ápice.
Visto que os argumentos de Filo – ou outros parecidos – foram utilizados depois por alguns cristãos na própria cidade de Alexandria, vale a pena resumi-los aqui. O que Filo intenta fazer é mostrar a compatibilidade entre a filosofia platônica e as Escrituras hebraicas. Segundo ele, já que os filósofos eram pessoas cultas, e as Escrituras hebraicas são anteriores a eles, é de supor que qualquer concordância entre ambos se deve a que os gregos copiaram dos judeus, e não vice-versa. Então, Filo procede a mostrar essa concordância interpretando o Antigo Testamento como uma série de alegorias que apontavam em direção às mesmas verdades eternas a que os filósofos se referem de maneira mais literal.
O Deus de Filo é absolutamente transcendente e imutável, no estilo de “Uno inefável” dos platônicos. Portanto, para se relacionar com este mundo de realidades transitórias e imutáveis, esse Deus faz uso de um ser intermediário, a quem Filo dá o nome de Logos (isto é, Verbo ou Razão). Esse Logos, além de ser um intermediário entre Deus e a criação, é a razão que existe em todo o Universo, e da qual a mente humana participa. Em outras palavras, é esse Logos que faz o Universo ser compreendido pela mente humana. Alguns pensadores cristãos adotaram essas ideias propostas por Filo, com todas as suas vantagens e seus perigos.
Assim, por sua dispersão pelo mundo romano, por sua tradução da Bíblia e ainda por seus intentos de dialogar com a cultura helenista, o judaísmo havia preparado o caminho para o advento e a disseminação da fé cristã.

O Mundo Greco-Romano

Entretanto, nessa disseminação, a nova fé teve de abrir caminho através de situações políticas e culturais que às vezes lhe facilitaram a passagem, e outras lhe serviram de obstáculo. A fim de compreender a vida cristã nesses primeiros séculos, devemos nos deter e expor essas circunstâncias políticas e culturais, ainda que em breve linhas.
O Império Romano havia dado à bacia do Mediterrâneo uma unidade política nunca antes vista. Ainda que em cada região alguns velhos costumes e leis se mantivessem, a política do Império foi fomentar a maior uniformidade possível sem fazer excessiva violência aos costumes de cada região. Essa havia sido antes também a política de Alexandre. Em ambos os casos o êxito foi notável, pois pouco se foi criando uma base comum que perdura até nossos dias. Essa base comum, tanto política como culturalmente, foi de enorme importância para o cristianismo do primeiro século.
A unidade da bacia do Mediterrâneo permitiu aos primeiros cristãos viajar de um lugar a outro sem temor de se verem envoltos em guerras ou assaltos. De fato, ao ler acerca das viagens de Paulo, vemos que o grande perigo da navegação nessa época era o mau tempo. Uns séculos antes, os piratas que infestavam o Mediterrâneo eram muito mais terríveis do que qualquer tempestade. Os caminhos romanos, que uniam até as mais distantes províncias, alguns dos quais ainda existem, não foram alheios aos pés dos cristãos que iam de um lugar ao outro, levando a mensagem da redenção em Jesus Cristo.
Visto que o comércio florescia, os povos iam de um lugar para o outro, e assim o cristianismo chegou frequentemente a alguma nova região, não levado por missionários ou pregadores itinerantes, mas por mercadores, escravos e outras pessoas que se viam obrigadas a viajar por diversas razões. Nesse sentido, as condições políticas da época foram favoráveis à disseminação da nova fé.
Mas também houve outros aspectos dessa situação que serviram de desafio a ameaça aos primeiros cristãos. Já que o Império intentava alcançar a maior uniformidade possível entre seus súditos de diversas origens, parte da política imperial consistia em fomentar a uniformidade religiosa. Isto se fazia mediante o sincretismo e o culto ao imperador.
O sincretismo, que consiste na mistura indiscriminada de religiões, foi característica da bacia do Mediterrâneo a partir do século III a.C. Dentro de certos limites, Roma o incentivou, pois o Império tinha interesse em que seus diversos súditos pensassem que, embora seus deuses tivessem diferentes nomes e atributos, no final de contas eram todos os mesmos deuses; muitos outros provenientes das diversas regiões foram sendo acrescentados ao panteão romano. (“Panteão” quer dizer precisamente “templo de todos os deuses”.) Pelos mesmos caminhos pelos quais transitaram os mercadores e missionários cristãos, transitavam também pessoas das mais variadas religiões, e todas essas religiões se entremesclavam e se fundiam nas praças e nos foros das cidades. O sincretismo era a forma religiosa da época.
Em tal ambiente, tanto judeus como cristãos pareciam ser pessoas intransigentes, que insistiam em seu Deus único e diferente de todos os demais deuses. Por essa razão, muitos viam no judaísmo e no cristianismo um cisto que devia ser extirpado da sociedade romana. Muitas vezes essas perseguições tinham características políticas. O culto ao imperador era um dos meios que Roma utilizava para fomentar a unidade e a lealdade de seu império. Negar-se a render esse culto era visto como sinal de traição ou, pelo menos, de deslealdade. Logo, não são poucos os casos que fica patente que, ao mesmo tempo em que um mártir morria por sua fé, quem o condenava o fazia levado por sentimentos de lealdade política.
Por outro lado, o sincretismo da época também se manifestava no que os historiadores de hoje chamam de “religiões de mistério”, ou simplesmente “mistérios”. Essas religiões não centralizavam sua fé nos velhos deuses do Olímpo – Zeus, Posídon, Afrodite etc. –, mas em outros deuses de caráter pessoal. Nos séculos anteriores, antes que se espalhasse o espírito sincretista e cosmopolita, cada indivíduo era devoto aos deuses do país em que havia nascido. Mas agora, em meio à confusão criada pelas conquistas de Alexandre e de Roma, cada pessoa tinha de decidir a que deuses prestariam sua devoção. Cada um desses deuses dos “mistérios” tinha seus próprios devotos: todos aqueles que haviam sido iniciados.
Em geral, cada uma dessas religiões baseava-se em um mito acerca das origens do mundo, ou da história do deus em questão. Do Egito provinha o mito de Ísis e Osíris, segundo o qual o deus Seth havia matado e esquartejado Osíris, e depois havia espalhado seus membros por todo o Egito. Ísis, a esposa de Osíris, os havia recolhido e dado nova vida a Osíris. Mas agora os órgãos genitais de Osíris haviam caído no Nilo, e por essa razão é que o Nilo é a fonte de fertilidade para todo o Egito. Também por essa razão, alguns dos devotos mais fervorosos desse culto se mutilavam a si mesmos, cortando-se os testículos e oferecendo-os em sacrifício.
Entre os soldados, era muito popular o culto  Mitra, deus de origem persa, cujos mitos incluíam uma série de combates contra o Sol e contra um touro de caráter mitológico. No Grécia, existiam desde os tempos imemoriais os mistérios de Elêusis, perto de Atenas. Os mistérios de Átis e Cibele incluíam ritual de iniciação chamado “taurobóleo”, no qual se matava um touro e se banhava ao neófito com seu sangue. Dado o caráter sincretista de todos esses cultos, logo uns se misturavam com outros, até o ponto de hoje se tornar difícil distinguir as características ou as práticas de um deles em particular.
Além disso, esses deuses não eram zelosos entre si, como o Deus dos judeus e dos cristãos; portanto, houve quem se dedicasse a colecionar mistérios, fazendo-se iniciar nesses cultos, um após o outro. Todas essas tendências sincretistas – em que os velhos deuses se entrelaçavam com as religiões de mistério e com o culto ao imperador – apresentavam forte desafio ao cristianismo nascente. Já que os cristãos se negavam a participar de tudo isso, frequentemente eram acusados de incredulidade e ateísmo.
Diante de tais acusações, os cristãos podiam recorrer a certos aspectos da cultura da época que pareciam prestar-lhes apoio. Mas já podemos indicar que existiram duas tradições filosóficas em que os cristãos encontraram robusto arsenal para a defesa de sua fé. Uma delas foi a tradição platônica; a outra, o estoicismo.
O mestre de Platão, Sócrates, havia sido condenado a morrer bebendo cicuta porque ele era considerado incrédulo e corruptor da juventude ateniense. Platão havia escrito vários diálogos em sua defesa, e, já no século I de nossa era, Sócrates era tido como um dos homens mais sábios e mias justos da antiguidade. Ora, Sócrates, Platão e toda a tradição de que ambos eram parte tinham criticado os deuses pagãos, dizendo que eram criação humana, e que segundo os mitos clássicos eram mais perversos do que os seres humanos. Acima de tudo, Platão falava de um supremo, imutável, perfeito, que era a suprema bondade e beleza. Além disso, tanto Sócrates como Platão criam na imortalidade da alma, e, portanto, na vida depois da morte. Platão afirmava que além deste mundo sensível e passageiro havia outro de realidades invisíveis e permanentes. Tudo isso foi de grande valor e atratividade para aqueles primeiros cristãos que se viam perseguidos e acusados de serem ignorantes e ingênuos. Por essas razões, a filosofia platônica exerceu um influxo sobre o pensamento cristão que perdura até hoje.
Algo semelhante sucedeu com o estoicismo. Essa escola filosófica – algo superior ao platonismo – ensinava doutrinas de alto caráter moral. Segundo os estoicos, há uma lei natural impressa em todo o universo e na razão humana, e essa lei nos diz como devemos nos comportar. Se alguns não a veem e não a seguem, isto se deve ao fato de que são néscios, pois quem é verdadeiramente sábio conhece essa lei e lhe obedece. Ademais, já que nossas paixões lutam contra nossa razão, e tratam de dominar nossa vida, a meta do sábio é fazer que sua razão domine toda paixão, até o ponto de não senti-la. Esse estado de não sentir paixão é a “apatia”, e nisto consiste a perfeição moral segundo os estoicos.
Também nesse caso, podemos imaginar o atrativo dessa doutrina para os cristãos, que se viam obrigados a enfrentar repetidamente os costumes corruptos de sua época, e a criticá-los. Já que os estoicos haviam feito o mesmo, em suas ideias e escritos, os cristãos encontravam apoio para sua defesa e propaganda. Igualmente ao platonismo, isto acarretava o perigo de que se chegasse a confundir a fé cristã com essas doutrinas filosóficas, e que assim se perdesse algo do caráter único do evangelho. Não faltaram aqueles que, em um aspecto ou outro, sucumbissem ante essa tentação. Mas isso não há de ocultar-nos o grande valor que essas doutrinas tiveram na primeira expansão do cristianismo.
Segundo o apóstolo Paulo, o cristianismo penetrou o mundo quando veio “a plenitude dos tempos”. Talvez alguém entendesse isto no sentido de que Deus facilitaria o caminho àqueles primeiros cristãos. Não há dúvidas de que muito do que estava acontecendo no século I facilitou o avanço da nova fé, mas também é certo que esses mesmos acontecimentos colocavam diante da igreja desafios difíceis que exigiam enorme valor e audácia.

A “plenitude dos tempos” não quer dizer que o mundo estivesse pronto para se tornar cristão, como fruta madura pronta para cair da árvore, mas quer dizer que, nos desígnios inescrutáveis de Deus, havia chegado o momento de enviar o seu Filho ao mundo para sofrer morte de cruz, e de espalhar os discípulos por esse mesmo mundo, a fim de que eles também dessem um testemunho custoso de sua fé no Crucificado.