domingo, 14 de agosto de 2016

DO SOL INVICTO A JESUS CRISTO: A CONVERSÃO DE CONSTANTINO

Muito já foi escrito e discutido sobre a conversão de Constantino. Pouco depois de ela ter acontecido houve escritores cristãos, como veremos no próximo capítulo, que quiseram mostrar que essa conversão era o ponto culminante de toda a história da igreja. Outros têm dito que Constantino não passava de um político hábil que percebeu as vantagens que poderia obter com uma “conversão” e, por isso, decidiu juntar-se à sua causa do cristianismo.
As duas interpretações são exageradas. Bastar ler os documentos da época para ver que a conversão de Constantino foi bem diferente da conversão comum de um cristão. Quando algum pagão se convertia, ele era submetido a um longo processo de disciplina e ensino, a fim de que houvesse certeza de que o novo convertido entendia e vivia sua nova fé, e então era batizado. O novo convertido, então, seguia seu bispo como guia e pastor, para descobrir o significado da sua fé nas situações concretas da vida.
O caso de Constantino foi bem diferente. Mesmo depois da batalha da Ponte Mílvia, e durante toda a sua vida, Constantino nunca se submeteu em nenhum aspecto à autoridade pastoral da igreja. Ele contava com o conselho de cristãos, como o sábio Lactando (tutor de seu filho Crispo) e o bispo Óssio de Córdoba (seu conselheiro para assuntos eclesiásticos), mas Constantino sempre se reservou o direito de determinar ele mesmo suas atitudes religiosas, pois considerava-se “bispo dos bispos”. Repetidamente, mesmo depois da sua conversão, Constantino participou de rituais pagãos que eram proibidos aos cristãos comuns, e os bispos não levantaram a voz em protesto e condenação, como teriam feito em qualquer outro caso.
O que acontecia não era somente que Constantino era uma pessoa ao mesmo tempo poderosa e irascível. O imperador também, apesar da sua política cada vez mais favorável aos cristãos e das suas afirmações de crer no poder de Jesus Cristo, tecnicamente pelo menos não era cristão, pois não tinha se submetido ao batismo. Constantino, na verdade, só foi batizado no leito de sua morte. De maneira que qualquer política ou edito em favor dos cristãos, da parte do imperador, era recebido pela igreja como um favor feito por um amigo ou simpatizante. Qualquer deslize religioso de Constantino era encarado da mesma perspectiva: como a ação de alguém que não fazia parte do grupo dos fiéis, ainda que fosse simpatizante deles. Uma pessoa assim podia receber conselhos da igreja, mas nunca sua direção ou condenação. Essa situação se encaixava perfeitamente nos propósitos de sua direção ou condenação. Essa situação se encaixava perfeitamente nos propósitos de Constantino e, por isso, ele teve o cuidado de somente se deixar batizar no leito de morte.
Em contrapartida, os que acham que Constantino se converteu simplesmente por oportunismo político estão equivocados por diversas razões. A primeira delas é que essa interpretação é anacrônica demais, alheia aos costumes da época. Até onde sabemos ninguém em toda antiguidade se acertou da questão religiosa com oportunismo político que tem sido característico da idade moderna. Para os antigos, os deuses eram realidades que bem concretas, e mesmo os mais céticos temiam e respeitavam os poderes sobrenaturais. Por isso, pensar que Constantino foi hipócrita ao se declarar cristão, sem crer de fato em Jesus Cristo, é anacronismo. A segunda razão é que na verdade, do ponto de vista puramente político, a conversão de Constantino aconteceu no pior momento possível. Quando Constantino adotou o labarum por emblema, ele estava se preparando para lutar pela cidade de Roma, centro das tradições pagãs, onde seus principais aliados eram os membros da velha aristocracia pagã, que se consideravam oprimidos por Magêncio. A maior força numérica do cristianismo não estava no Ocidente, onde Constantino governava e lutava contra Magêncio, mas no Oriente, para onde sua atenção seria dirigida somente anos mais tarde.
Por último, a opinião oportunista é equivocada, porque o grau de apoio que os cristãos poderiam ter prestado a Constantino era muito duvidoso. A igreja sempre tivera dúvidas sobre se os cristãos poderiam prestar serviço militar e, por isso, o número de cristãos no exército era pequeno. Entre a população civil, a maioria dos cristãos fazia parte da classe baixam que não poderia dar muito apoio financeiro às intenções de Constantino. E, de qualquer forma, depois de quase três séculos de medo do Império, ninguém poderia predizer qual seria a reação dos cristãos diante do fenômeno inesperado de um imperador cristão.
O mais certo parece ser que Constantino cria mesmo no poder de Jesus Cristo. Essa afirmação, entretanto, não implica que o imperador entendesse sua nova fé como os muitos cristãos que tinham entregue sua vida por ela a entendiam. Para Constantino, o Deus dos cristãos era um ser extremamente poderoso, que estava disposto a ajuda-lo sempre e quando ele favorecesse aos seus fiéis. Quando Constantino, portanto, começou a construir igrejas e a proclamar leis favoráveis ao cristianismo, ele não estava tanto buscando o favor dos cristãos, mas o de Deus. Esse Deus lhe tinha dado a vitória em Ponte Mílvia, e muitas outras que se seguiram. Em certo sentido, a fé de Constantino era semelhante à de Licínio, que disse aos seus soldados que o labarum de Constantino possuía certo poder sobrenatural, e que todos deveriam temê-lo. A diferença era que Constantino tinha se apropriado desse poder, servindo a causa dos cristãos. Essa interpretação encontra apoio nas declarações do próprio Constantino que a história conservou, mostrando-nos um homem sincero cuja compreensão do evangelho era reduzida.
Constantino interpretava a fé em Jesus Cristo de uma maneira que não o impedia de adorar a outros deuses. Seu pai já tinha sido devoto do Sol Invicto. Esse era um culto ao Deus Supremo, cujo símbolo era o Sol, mesmo não negando a existência de outros deuses. Parece que Constantino, durante boa parte da sua carreira política, pensou que o Sol Invicto e o Deus dos cristãos eram o mesmo ser, e que os outros deuses também eram reais e relativamente poderosos, apesar de serem divindade subalternas. Por essa razão, Constantino podia consultar o oráculo de Apolo, aceitar o título de sumo sacerdote dos deuses tradicionalmente conferido aos imperadores e participar de cerimônias pagãs de todos os tipos, sem pensar com isso estar traindo ou abandonando o Deus que lhe teria dado a vitória e o poder.
Além disso, Constantino era um político hábil. Ele tinha tanto poder que podia favorecer os cristãos, construir igrejas e até apossar de algumas imagens de deuses para mandá-las para Constantinopla. Mas, se ele quisesse suprimir todo o culto pagão, o imperador imediatamente teria de enfrentar uma oposição irresistível. Os velhos deuses não estavam totalmente esquecidos. A velha aristocracia e as extensas zonas rurais ainda não tinham sido atingidas pela pregação cristã. No exército havia muitos seguidores de Mitra e de outros deuses. A Academia de Atenas e o Museu de Alexandria, os dois grandes centros de estudo da época, dedicavam-se ao ensino da velha sabedoria pagã. Querer suprimir tudo isso através de um mandato imperial era impossível – ainda mais porque o imperador não via nenhuma contradição entre o Sol Invicto e a fé cristã.
A política religiosa e Constantino segui processo lento, mas constante. O mais provável é que isso não foi causado somente por exigência das circunstâncias, mas também por um progresso interno no próprio Constantino, à medida que ele deixava atrás de si a velha religião e compreendia melhor o alcance da nova. No começo, Constantino se limitou a garantir a paz da igreja, e a devolver-lhe as propriedades que haviam sido confiscadas durante a perseguição. Pouco depois, ele começou a apoiar a igreja mais decididamente, como, por exemplo, doando-lhe o palácio de Latrão, em Roma, que pertencia à família de sua esposa, e ordenando que os bispos que se dirigiam para o sínodo de Arles, em 314, utilizassem os meios de transporte imperiais, sem nenhum ônus para a igreja. Ao mesmo tempo, entretanto, ele tentava manter boas relações com os devotos dos cultos antigos e, particularmente, com o Senado romano. O Império oficialmente era pagão, e correspondia a Constantino, como cabeça do Império, o título de sumo sacerdote.  Negar-se a aceitá-lo seria rejeitar de forma súbita todas as antigas tradições do Império – e Constantino não estava disposto a tanto. Até 320, as moedas de Constantino frequentemente apresentavam símbolos e os nomes dos velhos deuses, ainda que muitas já contivessem também o monograma de Cristo.
A campanha de Licínio deu a Constantino uma nova oportunidade de aparecer como defensor do cristianismo. Era precisamente nos territórios que antes tinham pertencido a Licínio que a igreja era numericamente mais forte. Por isso, Constantino pôde nomear vários cristãos para cargos elevados na máquina administrativa do governo, e até pareceu que ele favorecia os cristãos, em detrimento dos pagãos. Ao mesmo tempo, suas desavenças com o Senado romano aumentavam, sendo que este até mesmo empreendeu uma campanha para reavivar a antiga religião, de modo que Constantino se sentiu cada vez mais inclinado a favorecer os cristãos.
Em 324, um imperial ordenou que todos os soldados adorassem o Deus supremo no primeiro dia da semana. Esse era o dia em que os cristãos celebravam a ressurreição do seu Senhor, mas era também o dia dedicado ao culto do Sol Invicto, e, por isso, os pagãos não podiam opor-se ao edito. No ano seguinte, 325, reuniu-se em Niceia a grande assembleia de bispos conhecida como o primeiro concílio ecumênico. Essa assembleia foi convocada por Constantino, e os bispos viajaram às extensas do tesouro imperial.
Já vimos como a fundação de Constantinopla foi um passo adiante nesse processo. Já o fato de criar um “nova Roma” em si era uma tentativa de fugir do poder das velhas famílias pagãs da aristocracia romana. Mas principalmente a política de utilizar os tesouros artísticos dos templos pagãos para a construção de Constantinopla fez com que o velho paganismo, até então rodeado de riquezas e pompa, ficasse cada vez mais pobre. É verdade que durante o governo de Constantino foram construídos e restaurados alguns templos pagãos. Em termos gerais, porém, os santuários pagãos perderam muito do seu esplendor ao mesmo tempo em que eram construídas enormes e suntuosas igrejas cristãs.

Apesar de tudo isso, Constantino continuou se comportando, até quase o fim dos seus dias, como sumo sacerdote do paganismo. Quando ele morreu, seus três filhos, que lhe sucederam não se opuseram ao desejo do Senado de divinizá-lo, e assim surgiu o fato bizarro de que Constantino, que tanto tinha feito de mal ao culto pagão, passou a ser um dos seus deuses.

Fonte: GONZALES, Justo - História Ilustrada do Cristianismo

terça-feira, 28 de junho de 2016

A PLENITUDE DOS TEMPOS

Os primeiros cristãos – entre eles Paulo – não criam que o tempo e o lugar do nascimento de Jesus foram deixados ao acaso. Pelo contrário, eles viam a mão de Deus preparando o advento de Jesus em todos os acontecimentos anteriores ao Natal e em todas as circunstâncias históricas que o rodearam. O mesmo pode ser dito do nascimento da igreja, que é o resultado da obra de Jesus. Deus havia preparado o caminho para que os discípulos, uma vez recebido o poder do Espírito Santo, pudessem ser suas testemunhas “em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, até os confins da terra” (At 1.8).
Portanto, a igreja nunca foi uma comunidade desprovida de todo contato com o mundo exterior. Os primeiros cristãos eram judeus do século I, e como judeus escutaram e receberam o evangelho. Depois, a nova fé foi se propagando, tanto entre os judeus que viviam fora da Palestina como entre os gentios que viviam no Império Romano e ainda fora dele. Em consequência, a fim de compreender a história da igreja em seus primeiros séculos, devemos primeiro observar o mundo em que a igreja se desenvolveu.

O Judaísmo na Palestina

Palestina, a região onde o cristianismo deu os primeiros passos, foi sempre uma terra sofrida. Em tempos antigos, isso se deveu principalmente a sua posição geográfica, que a colocava na encruzilhada das grandes rotas comerciais que uniam o Egito à Mesopotâmia, e a Arábia à Ásia Menor. Por toda história do Antigo Testamento, essa estreita faixa de terreno se viu cobiçada e invadida, umas vezes pelo Egito, e outras pelos grandes impérios que surgiram na região da Mesopotâmia e Pérsia. No século IV a.C., um novo contendente entrou na arena: Alexandre e suas hostes macedônicas. Ao derrotar os persas, Alexandre se fez dono da Palestina. Ele morreu em 323 a.C., seguindo-se então longos anos de instabilidade política. A dinastia dos Ptolomeus, fundada por um dos generais de Alexandre, apoderou-se do Egito, enquanto os Selêucidas, de semelhante origem, dominaram a Síria. De novo, a Palestina resultou ser a maçã da discórdia nas lutas entre Ptolomeus e Selêucidas.
As conquistas de Alexandre tiveram uma base ideológica. O propósito de Alexandre não era simplesmente conquistar o mundo, mas unir toda a humanidade sob uma mesma civilização de tonalidade marcadamente grega. O resultado disso foi o helenismo, que tendia a combinar elementos puramente gregos com outros tomados das diversas civilizações conquistadas. Ainda que o caráter preciso do helenismo tenha variado de região em região, em termos gerais foi a bacia oriental do Mediterrâneo que lhe deu uma unidade que serviu primeiro à expansão do Império Romano e depois à pregação do evangelho.
Mas o helenismo não era uma bênção para os judeus. Visto que parte da ideologia helenista consistia em equiparar e fundir os deuses de diversos povos, os judeus viam no helenismo uma ameaça à fé no Deus único de Israel. Por isso, a história da Palestina, desde a conquista de Alexandre até a destruição de Jerusalém em 70 d.C., pode se ver como um conflito constante entre as pressões do helenismo, por um lado, e a fidelidade dos judeus a seu Deus e suas tradições, por outra.
O ponto culminante dessa luta foi a rebelião dos Macabeus. Primeiro, o sacerdote Matias e, depois, três de seus filhos, Jônatas, Judas e Simão, rebelaram-se contra o helenismo dos Selêucidas, que pretendiam impor deuses pagãos entre os judeus. O movimento teve algum êxito. Mas já João Hircano, o filho de Simeão Macabeu, começou a se amoldar aos costumes dos povos circunvizinhos e a favorecer as tendências helenistas. Quando alguns dos judeus mais austeros se opuseram a essa política, deflagrou-se a perseguição. Por fim, em 63 a.C., o romano Pompeu conquistou o país e depôs o últimos dos Macabeus, Aristóbulo II.
A política dos romanos era, em geral, tolerante em relação à religião e aos costumes dos povos conquistados. Pouco tempo depois da deposição de Aristóbulo, os romanos devolveram aos descendentes dos Macabeus certa medida de autoridade, dando-lhes os títulos de sumo sacerdote e etnarca. Herodes nomeado rei da Judéia pelos romanos em 40 a.C., foi o último governante com certa ascendência macabeia, pois sua esposa era dessa linhagem.
Mas até a própria tolerância dos romanos não podia compreender a obstinação dos judeus, que insistiam em render culto somente a seu Deus e se rebelavam ante a menor ameaça contra a sua fé. Herodes fez todo o possível para introduzir o helenismo no país. Com esse propósito, fez construir templos em honra a Roma e a Augusto em Samaria e Cesareia. Porém, quando se atreveu a colocar uma águia de ouro na entrada do Templo, os judeus se sublevaram e Herodes teve que recorrer à violência. Seus sucessores seguiram a mesma política helenizante, fazendo construir novas cidades de estilo helenista e trazendo gentios para viverem nelas.
Por essa razão, as rebeliões sucederam quase initerruptamente. Jesus era menino quando os judeus se repelaram contra o etnarca Arquelau, que teve que recorrer às tropas romanas. Essas tropas, sob o comando do general Varo, destruíram a cidade Séforis, capital da Galiléia e vizinha de Nazaré, e crucificaram ali mil judeus. É a essa rebelião que se refere Gamaliel ao diz que, “nos dias do recenseamento, surgiu Judas, o Galileu, e desencaminhou muitos que o seguiram” (At 5.37). O partido dos Zelotes, que se opuseram tenazmente ao regime romano, continuou existindo depois das atrocidades de Varo, e cumpriu papel importante na grande rebelião que irrompeu em 66 d.C. Essa rebelião foi, talvez, a mais violenta de todas, e conduziu em suas consequências, à destruição de Jerusalém em 70 d.C., quando o general – e depois imperador – Tito conquistou a cidade e derrubou o Templo.
Em meio a tais lutas e tentações, não é de se estranhar que o judaísmo se tenha tornado cada vez mais legalista. Era necessário que o povo tivesse diretrizes claras acerca de qual deveria ser sua conduta em diversas circunstâncias. Os preceitos detalhados dos fariseus não tinham o propósito de fomentar religião puramente externa – ainda que às vezes tenham tido esse resultado –, mas, antes, procuravam aplicar a Lei às circunstâncias que o povo vivia.
Os fariseus eram o partido do povo, que não desfrutava das vantagens materiais acarretadas pelo regime romano e helenista. Para eles, o importante era assegurar-se de cumprir a Lei, mesmo nos tempos difíceis que estavam vivendo. Ademais, os fariseus criam em algumas doutrinas que não tinham apoio nas mais antigas tradições dos judeus, como a ressurreição e a existência de anjos.
Os saduceus, por sua parte, eram o partido da aristocracia, cujos interesses os levavam a colaborar com o regime romano. Visto que o sumo sacerdote pertencia geralmente a essa classe social, o culto do Templo ocupava para os saduceus a posição central que a Lei tinha para os fariseus. Além disso, aristocratas e conservadores como eram, os saduceus rejeitavam as doutrinas da ressurreição e a da existência de anjos, que, segundo eles, eram meras inovações.
Portanto, devemos cuidar de não exagerar a oposição de Jesus e dos primeiros cristãos ao partido dos fariseus. De fato, quase todos eles estavam mais perto dos fariseus que dos saduceus. A razão pela qual Jesus os critica não é então por terem sido maus judeus, mas que, em seu afã de cumprir a Lei ao pé da letra, esqueciam-se às vezes dos seres humanos a quem a Lei fora dada.
Além desses partidos, que ocupavam o centro da cena religiosa, havia outras seitas e outros bandos no judaísmo do século I. Já mencionamos os zelotes. Os essênios, a quem muitos autores atribuem os famosos “rolos do mar Morto”, eram um grupo com ideias puristas, que se apartava de todo contato com o mundo dos gentios, a fim de manter sua pureza ritual. Segundo o historiador Josefo, esses essênios sustentavam, além das doutrinas tradicionais do judaísmo, certas doutrinas secretas que lhes estavam vedadas revelar a quem não fosse membro da seita.
Por outra parte, toda essa diversidade de tendências, partidos e seitas não há de ofuscar os pontos fundamentais que todos os judeus sustentavam em comum: o monoteísmo ético e a esperança escatológica.
O monoteísmo ético sustentava que há um só Deus e que este Deus requer, além do culto apropriado, a justiça entre os seres humanos. Os diversos partidos podiam estar em desacordo com respeito ao que essa justiça queria dizer em termos concretos, mas todos concordavam quanto à necessidade de honrar ao Deus único com a vida toda.
A esperança escatológica era o outro ponto comum da fé de Israel. Todos, dos saduceus aos zelotes, guardavam a esperança messiânica e criam firmemente que chegaria o dia de Deus interferir na história para restaurar Israel e cumprir suas promessas de um Reino de paz e justiça. Alguns criam que seu dever estava em acelerar a chegada desse dia recorrendo às armas. Outros diziam que tais coisas deviam ser deixadas exclusivamente nas mãos de Deus. Mas todos concordavam em sua visão dirigida em direção ao futuro, quando se cumpririam as promessas de Deus.
De todos esses grupos, o mais apto para sobreviver depois da destruição do Templo era o dos fariseus. Efetivamente, essa seita tinha suas raízes na época do exílio, quando os judeus não podiam chegar ao Templo para adorar, e, portanto, sua fé se centralizava na Lei. Durante os últimos séculos antes do advento de Jesus, o número de judeus que viviam em terras longínquas aumentava de forma constante. Tais pessoas, que não podiam visitar o Templo senão em raras ocasiões, viam-se obrigadas a centralizar a sua fé na Lei e não no Templo. Em 70 d.C., a destruição de Jerusalém deu o golpe de misericórdia no partido dos saduceus. Portanto, o judaísmo que o cristianismo conheceu através de quase toda a sua história vem da tradição farisaica, assim como o judaísmo que existe em nossos dias.

 O Judaísmo da Dispersão

Como já assinalamos, houve um número cada vez maior de judeus que viviam fora da Palestina durante os séculos que precederam o advento de Jesus. Alguns desses judeus eram descendentes dos que haviam ido ao exílio na Babilônia; nessa cidade, portanto, como em toda a região da Mesopotâmia e Pérsia, havia fortes contingentes judeus. No século I as colônias judaicas em Roma e em Alexandria eram bem numerosas. Em quase todas as cidades do Mediterrâneo oriental havia pelo menos uma sinagoga. No Egito, chegou-se até a construir um templo por volta do século VII a.C. na cidade de Elefantina, e houve-se outro no Delta do Nilo no século II a.C. Mas em geral esse judeus, chamados de “da Dispersão” ou da “Diáspora”, não construíram templos nos quais podiam oferecer sacrifícios, mas antes sinagogas nas quais estudavam as Escrituras.
O judaísmo da Diáspora é de suma importância para a história da igreja cristã, pois foi através dele, segundo veremos no próximo capítulo, que a nova fé se estendeu mais rapidamente pelo Império Romano. Além disso, esse judaísmo proporcionou à igreja a propaganda religiosa. Esse judaísmo se distinguia de seu congênere na Palestina, principalmente por duas características: seu uso do idioma grego e seu contato inevitavelmente maior com a cultura helenista.
Na Palestina do século I e em toda a região do oriente desse país, havia muitos judeus que já não usavam o antigo idioma hebreu, mas o aramaico. Os judeus que se achavam dispersos por todo o restante do Império Romano falavam o grego. Depois das conquistas de Alexandre, o grego veio a ser a língua franca da bacia oriental do Mediterrâneo. Judeus, egípcios, cipriotas e até os romanos utilizavam o grego para comunicar-se entre si. Em algumas regiões – especialmente no Egito –, os judeus perderam o uso da língua hebraica, e foi necessário traduzir suas Escrituras ao grego.
Essa versão grega do Antigo Testamento recebeu o nome de “Septuaginta”, que se abrevia frequentemente mediante o número romano LXX. Esse nome – e número – provém de uma antiga lenda segundo a qual Ptolomeu II Filadelfo, rei do Egito, ordenou a 72 anciãos hebreus que traduzissem a Bíblia independentemente, e todos eles produziram trabalhos idênticos entre si. Ao que parece, o propósito dessa lenda era garantir a autoridade dessa versão, que foi, de fato, produzida ao longo de vários séculos, por tradutores com distintos critérios, de modo que algumas proporções excessivamente literais, enquanto outras tomam liberdades indevidas com o texto.
Em todo o caso, a importância da Septuaginta foi enorme para a igreja cristã primitiva. Essa é a Bíblia que a maioria dos autores do Novo Testamento cita, e exerceu influência indubitável sobre a formação do vocabulário cristão dos primeiros séculos. Ademais, quando aqueles primeiros crentes se esparramaram por todo o Império com a mensagem do evangelho, eles encontraram na Septuaginta instrumento útil para sua propaganda. De fato, o uso que os cristãos fizeram da Septuaginta foi tal e tão efetivos que os judeus se viram obrigados a produzir novas versões, como a de Áquila, e a deixar os cristãos na posse da Septuaginta.
A outra marca distinta do judaísmo da Dispersão foi o seu inevitável contato com a cultura helenista. Em certo sentido, poderia se dizer que a Septuaginta é também o resultado dessa situação. Em todo o caso, fica claro que os judeus da Dispersão não podiam se esquivar do contato com os gentios, como podiam fazer em certa medida seus correligionários da Palestina. Os judeus da Dispersão viam-se obrigados, em consequência, a defender sua fé a cada passo diante daquelas pessoas da cultura helenista, para quem a fé de Israel era ridícula, antiquada ou ininteligível.
Diante dessa situação, e especialmente na cidade de Alexandria, surgiu entre os judeus um movimento que tratava de mostrar a compatibilidade entre o melhor da cultura helenista e a região hebraica. Já no século III a.C., Demétrio narrou a história dos reis de Judá seguindo os padrões da historiografia pagã. Mas foi na pessoa de Filo de Alexandria, contemporâneo de Jesus, que esse movimento alcançou o ápice.
Visto que os argumentos de Filo – ou outros parecidos – foram utilizados depois por alguns cristãos na própria cidade de Alexandria, vale a pena resumi-los aqui. O que Filo intenta fazer é mostrar a compatibilidade entre a filosofia platônica e as Escrituras hebraicas. Segundo ele, já que os filósofos eram pessoas cultas, e as Escrituras hebraicas são anteriores a eles, é de supor que qualquer concordância entre ambos se deve a que os gregos copiaram dos judeus, e não vice-versa. Então, Filo procede a mostrar essa concordância interpretando o Antigo Testamento como uma série de alegorias que apontavam em direção às mesmas verdades eternas a que os filósofos se referem de maneira mais literal.
O Deus de Filo é absolutamente transcendente e imutável, no estilo de “Uno inefável” dos platônicos. Portanto, para se relacionar com este mundo de realidades transitórias e imutáveis, esse Deus faz uso de um ser intermediário, a quem Filo dá o nome de Logos (isto é, Verbo ou Razão). Esse Logos, além de ser um intermediário entre Deus e a criação, é a razão que existe em todo o Universo, e da qual a mente humana participa. Em outras palavras, é esse Logos que faz o Universo ser compreendido pela mente humana. Alguns pensadores cristãos adotaram essas ideias propostas por Filo, com todas as suas vantagens e seus perigos.
Assim, por sua dispersão pelo mundo romano, por sua tradução da Bíblia e ainda por seus intentos de dialogar com a cultura helenista, o judaísmo havia preparado o caminho para o advento e a disseminação da fé cristã.

O Mundo Greco-Romano

Entretanto, nessa disseminação, a nova fé teve de abrir caminho através de situações políticas e culturais que às vezes lhe facilitaram a passagem, e outras lhe serviram de obstáculo. A fim de compreender a vida cristã nesses primeiros séculos, devemos nos deter e expor essas circunstâncias políticas e culturais, ainda que em breve linhas.
O Império Romano havia dado à bacia do Mediterrâneo uma unidade política nunca antes vista. Ainda que em cada região alguns velhos costumes e leis se mantivessem, a política do Império foi fomentar a maior uniformidade possível sem fazer excessiva violência aos costumes de cada região. Essa havia sido antes também a política de Alexandre. Em ambos os casos o êxito foi notável, pois pouco se foi criando uma base comum que perdura até nossos dias. Essa base comum, tanto política como culturalmente, foi de enorme importância para o cristianismo do primeiro século.
A unidade da bacia do Mediterrâneo permitiu aos primeiros cristãos viajar de um lugar a outro sem temor de se verem envoltos em guerras ou assaltos. De fato, ao ler acerca das viagens de Paulo, vemos que o grande perigo da navegação nessa época era o mau tempo. Uns séculos antes, os piratas que infestavam o Mediterrâneo eram muito mais terríveis do que qualquer tempestade. Os caminhos romanos, que uniam até as mais distantes províncias, alguns dos quais ainda existem, não foram alheios aos pés dos cristãos que iam de um lugar ao outro, levando a mensagem da redenção em Jesus Cristo.
Visto que o comércio florescia, os povos iam de um lugar para o outro, e assim o cristianismo chegou frequentemente a alguma nova região, não levado por missionários ou pregadores itinerantes, mas por mercadores, escravos e outras pessoas que se viam obrigadas a viajar por diversas razões. Nesse sentido, as condições políticas da época foram favoráveis à disseminação da nova fé.
Mas também houve outros aspectos dessa situação que serviram de desafio a ameaça aos primeiros cristãos. Já que o Império intentava alcançar a maior uniformidade possível entre seus súditos de diversas origens, parte da política imperial consistia em fomentar a uniformidade religiosa. Isto se fazia mediante o sincretismo e o culto ao imperador.
O sincretismo, que consiste na mistura indiscriminada de religiões, foi característica da bacia do Mediterrâneo a partir do século III a.C. Dentro de certos limites, Roma o incentivou, pois o Império tinha interesse em que seus diversos súditos pensassem que, embora seus deuses tivessem diferentes nomes e atributos, no final de contas eram todos os mesmos deuses; muitos outros provenientes das diversas regiões foram sendo acrescentados ao panteão romano. (“Panteão” quer dizer precisamente “templo de todos os deuses”.) Pelos mesmos caminhos pelos quais transitaram os mercadores e missionários cristãos, transitavam também pessoas das mais variadas religiões, e todas essas religiões se entremesclavam e se fundiam nas praças e nos foros das cidades. O sincretismo era a forma religiosa da época.
Em tal ambiente, tanto judeus como cristãos pareciam ser pessoas intransigentes, que insistiam em seu Deus único e diferente de todos os demais deuses. Por essa razão, muitos viam no judaísmo e no cristianismo um cisto que devia ser extirpado da sociedade romana. Muitas vezes essas perseguições tinham características políticas. O culto ao imperador era um dos meios que Roma utilizava para fomentar a unidade e a lealdade de seu império. Negar-se a render esse culto era visto como sinal de traição ou, pelo menos, de deslealdade. Logo, não são poucos os casos que fica patente que, ao mesmo tempo em que um mártir morria por sua fé, quem o condenava o fazia levado por sentimentos de lealdade política.
Por outro lado, o sincretismo da época também se manifestava no que os historiadores de hoje chamam de “religiões de mistério”, ou simplesmente “mistérios”. Essas religiões não centralizavam sua fé nos velhos deuses do Olímpo – Zeus, Posídon, Afrodite etc. –, mas em outros deuses de caráter pessoal. Nos séculos anteriores, antes que se espalhasse o espírito sincretista e cosmopolita, cada indivíduo era devoto aos deuses do país em que havia nascido. Mas agora, em meio à confusão criada pelas conquistas de Alexandre e de Roma, cada pessoa tinha de decidir a que deuses prestariam sua devoção. Cada um desses deuses dos “mistérios” tinha seus próprios devotos: todos aqueles que haviam sido iniciados.
Em geral, cada uma dessas religiões baseava-se em um mito acerca das origens do mundo, ou da história do deus em questão. Do Egito provinha o mito de Ísis e Osíris, segundo o qual o deus Seth havia matado e esquartejado Osíris, e depois havia espalhado seus membros por todo o Egito. Ísis, a esposa de Osíris, os havia recolhido e dado nova vida a Osíris. Mas agora os órgãos genitais de Osíris haviam caído no Nilo, e por essa razão é que o Nilo é a fonte de fertilidade para todo o Egito. Também por essa razão, alguns dos devotos mais fervorosos desse culto se mutilavam a si mesmos, cortando-se os testículos e oferecendo-os em sacrifício.
Entre os soldados, era muito popular o culto  Mitra, deus de origem persa, cujos mitos incluíam uma série de combates contra o Sol e contra um touro de caráter mitológico. No Grécia, existiam desde os tempos imemoriais os mistérios de Elêusis, perto de Atenas. Os mistérios de Átis e Cibele incluíam ritual de iniciação chamado “taurobóleo”, no qual se matava um touro e se banhava ao neófito com seu sangue. Dado o caráter sincretista de todos esses cultos, logo uns se misturavam com outros, até o ponto de hoje se tornar difícil distinguir as características ou as práticas de um deles em particular.
Além disso, esses deuses não eram zelosos entre si, como o Deus dos judeus e dos cristãos; portanto, houve quem se dedicasse a colecionar mistérios, fazendo-se iniciar nesses cultos, um após o outro. Todas essas tendências sincretistas – em que os velhos deuses se entrelaçavam com as religiões de mistério e com o culto ao imperador – apresentavam forte desafio ao cristianismo nascente. Já que os cristãos se negavam a participar de tudo isso, frequentemente eram acusados de incredulidade e ateísmo.
Diante de tais acusações, os cristãos podiam recorrer a certos aspectos da cultura da época que pareciam prestar-lhes apoio. Mas já podemos indicar que existiram duas tradições filosóficas em que os cristãos encontraram robusto arsenal para a defesa de sua fé. Uma delas foi a tradição platônica; a outra, o estoicismo.
O mestre de Platão, Sócrates, havia sido condenado a morrer bebendo cicuta porque ele era considerado incrédulo e corruptor da juventude ateniense. Platão havia escrito vários diálogos em sua defesa, e, já no século I de nossa era, Sócrates era tido como um dos homens mais sábios e mias justos da antiguidade. Ora, Sócrates, Platão e toda a tradição de que ambos eram parte tinham criticado os deuses pagãos, dizendo que eram criação humana, e que segundo os mitos clássicos eram mais perversos do que os seres humanos. Acima de tudo, Platão falava de um supremo, imutável, perfeito, que era a suprema bondade e beleza. Além disso, tanto Sócrates como Platão criam na imortalidade da alma, e, portanto, na vida depois da morte. Platão afirmava que além deste mundo sensível e passageiro havia outro de realidades invisíveis e permanentes. Tudo isso foi de grande valor e atratividade para aqueles primeiros cristãos que se viam perseguidos e acusados de serem ignorantes e ingênuos. Por essas razões, a filosofia platônica exerceu um influxo sobre o pensamento cristão que perdura até hoje.
Algo semelhante sucedeu com o estoicismo. Essa escola filosófica – algo superior ao platonismo – ensinava doutrinas de alto caráter moral. Segundo os estoicos, há uma lei natural impressa em todo o universo e na razão humana, e essa lei nos diz como devemos nos comportar. Se alguns não a veem e não a seguem, isto se deve ao fato de que são néscios, pois quem é verdadeiramente sábio conhece essa lei e lhe obedece. Ademais, já que nossas paixões lutam contra nossa razão, e tratam de dominar nossa vida, a meta do sábio é fazer que sua razão domine toda paixão, até o ponto de não senti-la. Esse estado de não sentir paixão é a “apatia”, e nisto consiste a perfeição moral segundo os estoicos.
Também nesse caso, podemos imaginar o atrativo dessa doutrina para os cristãos, que se viam obrigados a enfrentar repetidamente os costumes corruptos de sua época, e a criticá-los. Já que os estoicos haviam feito o mesmo, em suas ideias e escritos, os cristãos encontravam apoio para sua defesa e propaganda. Igualmente ao platonismo, isto acarretava o perigo de que se chegasse a confundir a fé cristã com essas doutrinas filosóficas, e que assim se perdesse algo do caráter único do evangelho. Não faltaram aqueles que, em um aspecto ou outro, sucumbissem ante essa tentação. Mas isso não há de ocultar-nos o grande valor que essas doutrinas tiveram na primeira expansão do cristianismo.
Segundo o apóstolo Paulo, o cristianismo penetrou o mundo quando veio “a plenitude dos tempos”. Talvez alguém entendesse isto no sentido de que Deus facilitaria o caminho àqueles primeiros cristãos. Não há dúvidas de que muito do que estava acontecendo no século I facilitou o avanço da nova fé, mas também é certo que esses mesmos acontecimentos colocavam diante da igreja desafios difíceis que exigiam enorme valor e audácia.

A “plenitude dos tempos” não quer dizer que o mundo estivesse pronto para se tornar cristão, como fruta madura pronta para cair da árvore, mas quer dizer que, nos desígnios inescrutáveis de Deus, havia chegado o momento de enviar o seu Filho ao mundo para sofrer morte de cruz, e de espalhar os discípulos por esse mesmo mundo, a fim de que eles também dessem um testemunho custoso de sua fé no Crucificado.

sábado, 14 de maio de 2016

A IDADE MÉDIA E O RENASCIMENTO: 1050 A 1500 d.C


O período patrístico concentrou-se em torno do mundo mediterrâneo e de centros de poder como Roma e Constantinopla. A queda de Roma, ocasionada pela ação de tropas invasoras vindas do norte, lançou o mundo mediterrâneo ocidental em um completo caos. A instabilidade estendeu-se por toda a região. Os historiadores ainda se referem ao período que vai da queda de Roma até cerca do ano 1000 como a “A idade das Trevas”, uma indicação de que a cultura e o ensino eram relativamente difíceis de obter ao longo desses séculos de instabilidade e insegurança. Embora o debate teológico tenha prosseguido na igreja ocidental, ao longo desse período, enfrentava um contexto em que imperava uma mentalidade de sobrevivência. Havia um interesse relativamente reduzido em relação a esses debates teológicos. No mundo mediterrâneo oriental também surgiu uma certa instabilidade, à medida que o islamismo começou a difundir-se por toda a região. Apesar de o cristianismo jamais ter sido totalmente suplantado, muito cedo se encontrou em uma condição de minoria, em termos de religião.
Ao longo desse período da história europeia, o centro do pensamento teológico cristão deslocou-se do mundo mediterrâneo para a Europa Ocidental. Em 410, Roma foi finalmente conquistada por Alarico, um acontecimento frequentemente considerado como o início da Idade das Travas na Europa Ocidental. A expansão do islamismo pelo mundo mediterrâneo, no século VII, provocou uma instabilidade política generalizada e posteriores mudanças estruturais na região. Até o século XI, um certo grau de estabilidade havia se estabelecido nessa área, havendo surgido três grandes sistemas de poder em substituição ao antigo  Império Romano.

     1.      O Império Bizantino, cujo centro era a cidade de Constantinopla (hoje Istambul, na atual Turquia). A forma de cristianismo predominante nessa região baseava-se na língua grega e era profundamente ligada aos escritos dos estudiosos e João Damasco.

     2.      A Europa Ocidental, principalmente em regiões como a França, a Alemanha, os Países baixos e o norte da Itália. A forma de cristianismo que veio a predominar nessa região tinha como cetro a cidade de Roma e seu bispo era conhecido como “o Papa”.  (Entretanto, no período conhecido como o “Grande Cisma”, surgiu uma certa confusão: havia dois adversários que disputavam o papado, um deles baseado em Roma e o outro, na cidade de Avignon, no sul da França.) Aqui, a teologia concentrou-se na grande catedral e nas universidades de Paris e outros locais, tendo como base, em grande parte, os escritos em latim de Agostinho, Ambrósio e Hilário de Poitiers.

      3.      O Califado, região islâmica que compreende parte do Extremo Oriente e do Sul do Mediterrâneo. Com a queda de Constantinopla, em 1453, a expansão do islamismo, ao final do século XV, tinha se estabelecido de forma significativa em duas regiões do continente europeu: na Espanha e nos Balcãs. Esse avanço foi finalmente barrado pela derrota dos mouros, na Espanha, na última década do século XV, bem como pela derrota dos exércitos islâmicos fora de Viena, em 1523.

Um fato de importância fundamental na história da igreja ocorreu nesse período. Por uma série de motivos, as relações entre a igreja oriental, estabelecida em Constantinopla, e a igreja ocidental, estabelecida em Roma, tornaram-se cada vez mais hostis ao longo dos séculos IX e X. O crescente desentendimento, em torno da cláusula filioque, no credo Niceno teve grande contribuição para essa atmosfera cada vez mais hostil. Outros fatores também contribuíram, incluindo a rivalidade política entre a Roma de fala latina e a Constantinopla de língua grega, assim como a crescente pretensão de autoridade por parte do papado romano. O rompimento final entre o ocidente católico e o oriente ortodoxo é normalmente datado de 1054, embora esta data seja ligeiramente arbitrária.
Um dos maiores resultados dessa tensão foi o fato de haver uma reduzida interação teológica entre oriente e ocidente. Embora os teólogos ocidentais, como Tomás de Aquino, tenham se sentido à vontade para inspirar-se nos escritos dos pais gregos, essas obras tendem a preceder esse período. As obras de teólogos ortodoxos posteriores, como do notável escritor Gregório Palamas, atraíram pouca atenção no ocidente. Pode-se dizer que somente no século XX a teologia ocidental começou a redescobrir as riquezas da tradição ortodoxa.
O termo “teologia medieval” normalmente é usado como referência à teologia ocidental que havia nesse período, ao passo que o termo “teologia bizantina” é aproximadamente, anterior à queda de Constantinopla em 1453. Durante esse período, na história europeia ocidental os centros da teologia cristã gradualmente se transferiram para o norte, para a região central da França e da Alemanha. Embora Roma tenha permanecido como centro do poder cristão na região, a atividade intelectual gradualmente migrou para os monastérios da França, como Chartres, Reims e Bec. Com a fundação das universidades medievais, a teologia rapidamente se consolidou como uma área central de estudos acadêmicos. Uma típica universidade medieval oferecia quatro faculdades: o curso básico de humanidades e os três superiores de teologia, medicina e direito.

Esclarecimento dos termos

Definir períodos históricos é algo notoriamente complexo. Parte do problema encontra-se na falta de consenso universal em torno das características que identificam um determinado período. É especificamente isso o que ocorre com a “Idade Média”, o “Renascimento” e a “Idade Moderna”. Há também imensas dificuldades para se chegar a uma definição em relação a alguns dos movimentos intelectuais do período, especialmente o humanismo.
O período analisado nesse momento deu origem a dois dos mais importantes movimentos intelectuais do pensamento: o escolasticismo e o humanismo. Ambos dominaram o mundo intelectual – inclusive o teológico – entre 1300 e 1500. Embora se pudesse argumentar que, no ano de 1500, o escolasticismo estivesse em decadência, esse movimento ainda exercia uma grande influência sobre muitas universidades europeias, como a Universidade de Paris. Uma compreensão acerca da natureza desses movimentos é algo essencial a qualquer tentativa de entender a evolução da teologia cristã desse período ou para compreender as pressões religiosas e intelectuais, que ao final do último ser geralmente considerado como uma reação à pobreza cultural e à excessiva precisão teológica do primeiro.

A Idade Média

O termo “Idade Média” foi criado por escritores do Renascimento e pare ter sido adotado, de maneira geral, perto do final do século XVI. Os autores renascentistas ansiavam por desacreditar o período intermediário, que se instalara entre as glórias da Antiguidade clássica e sua época. Portanto, eles criaram o termo “Idade Média” como referência a uma fase monótona e estagnada, que separava dois períodos importantes e criativos. O adjetivo “medieval” significa “relacionado à Idade Média”. A expressão “teologia medieval” passou a ser de uso geral e pode, em sentido amplo, ser interpretada como “a teologia da Europa Ocidental, no período que se situa entre o final da Idade das Trevas e o século XVI”. Entretanto, essa expressão é imprecisa, contestada e possibilita vários tipos de interpretação.
Na Europa, ao fim da Idade das Trevas e o início da Idade Média, estava preparado o cenário para o reavivamento de cada área do trabalho acadêmico. Na França, ao final do século XI, a recuperação de uma certa estabilidade política, estimulou o ressurgimento da Universidade de Paris, que rapidamente se tornou conhecida como o centro intelectual da Europa. Em Paris, uma série de “escolas” teológicas foram abertas na margem esquerda do Sena e em Ile de la Cité, à sombra da recém-construída Catedral de Notre Dame.
Uma dessas escolas foi o Collège de la Sorbonne que, posteriormente, alcançou tamanha fama, tornando a expressão “a Sorbonne” uma forma abreviada de referir-se a Universidade de Paris. Já no século XVI, Paris era amplamente reconhecida como avançado centro de estudos teológicos e filosóficos, possuindo entre seus estudantes indivíduos famosos como Erasmo de Roterdã e João Calvino. Outros centros de estudos semelhantes foram logo criados em outras partes da Europa. Instaurou-se um novo programa de desenvolvimento teológico voltado à consolidação dos aspectos intelectuais, legal e espiritual da vida da igreja cristã.
A fase inicial do período medieval é dominada pelos progressos feitos na França. Vários monastérios produziram brilhantes autores e intelectuais cristãos como, por exemplo, Lanfranc (1010-89 d.C.) e Anselmo (1033-1109 d.C.), ambos oriundos do monastério de Bec, na Normandia. Rapidamente, a Universidade de Paris consolidou-se como um avanço centro de investigação teológica com estudiosos como Pedro Abelardo (1079-1142), Alberto, o Magno (1200-80), Tomás de Aquino (1225-74) e Boaventura (1217-74). Os séculos XIV e XV assistiram a uma considerável expansão do setor universitário na Europa Ocidental com a criação de importantes universidades na Alemanha e em outros locais.
Um elemento crucial para o novo interesse medieval pela teologia também está associado à Paris. Pouco antes de 1140, Pedro Lombardo chegou à universidade para dar aulas. Uma de suas principais preocupações era fazer com que seus estudantes se empenhassem para dominar os penosos temas da teologia. Como forma de contribuir para isso, ele escreveu um livro-de-texto – talvez um dos livros mais maçantes já escritos. Sua obra, Sententiarum libriquattour ou Four books of the sentences [Quatro livros de sentenças], é uma combinação de citações da Bíblia e de autores patrísticos organizados por tópicos. A tarefa que ele dava a seus estudantes era simples: encontrar os sentidos das citações e compreendê-las. O livro mostrou-se de grande relevância para o avanço do legado de Agostinho, pois os estudantes eram forçados a se empenhar para compreender as idéias de Agostinho e para conciliar textos aparentemente contraditórios por meio da elaboração de explicações teológicas adequadas sobre suas incongruências.
Alguns autores tentaram fazer com que o livro fosse censurado, destacando seus ocasionais enunciados imprudentes (como a perspectiva de que Cristo não existiu como ser humano, uma visão que veio a ser conhecida como “niilismo cristológico”). Entretanto, até 1215, a obra havia se firmado como livro-de-texto mais importante da época. O estudo e o comentário da obra de Pedro Lombardo tornaram-se obrigatórios para os teólogos. O trabalho resultante tornou-se um dos mais conhecidos gêneros literários da teologia na Idade Média. Entre os mais notáveis exemplos incluem-se os comentários de Tomás de Aquino, Boaventura e Duns Scotus.


O Renascimento

O termo, derivado da palavra francesa “renaissance”, é hoje empregado universalmente para designar o avivamento literário e artístico que ocorreu na Itália dos séculos XIV e XV. Paolo Giovio, em 1546, referiu-se ao século XIV como “aquele afortunado século, em que as letras latinas renasceram (renatae)”, de certa forma antecipando a nomenclatura dada ao período. Certos historiadores, especialmente Jacob Burckhardt, alegam que o Renascimento deu origem à Idade Moderna. De acordo com Burckhardt, foi nesse período que o ser humano começou a pensar sobre si mesmo como indivíduo. A definição de Burckhardt, sob vários aspectos, explica o Renascimento em termos puramente individualistas, o que é altamente questionável. No entanto, ele está indubitavelmente correto em um sentido: algo de novo e empolgante ocorreu na Itália renascentista que se mostrou capaz de exercer um grande fascínio sobre várias gerações de intelectuais.
Não fica inteiramente claro o motivo pelo qual a Itália veio a tornar-se o berço desse novo e brilhante movimento na história das ideias. Diversos fatores foram identificados como detentores de certa influência nessa questão.

    1.      A teologia escolástica – a mais importante força intelectual do período medieval – jamais teve particular influência na Itália. Embora muitos italianos tenham sido famosos teólogos (inclusive Tomás de Aquino e Gregório de Rimini), eles geralmente viviam e trabalhavam no norte da Europa. Portanto, havia um vácuo intelectual na Itália ao longo do século XIV. Espaços vizinhos tendem a ser ocupados – e o humanismo renascentista empenhou-se para ocupar essa brecha em particular.

      2.      A Itália estava repleta de visíveis e tangíveis resquícios de grandeza da Antiguidade. As ruínas de antigos monumentos e construções romanas espalhavam-se por todo o país e parecem haver despertado, na época do Renascimento, o interesse pela antiga civilização romana, atuando como estímulo para que seus intelectuais resgatassem a vitalidade da cultura clássico-romana, em uma época que era culturalmente árida e estéril.

     3.      À medida que teve início a decadência do Império Bizantino – Constantinopla caiu, finalmente, em 1453 – ocorreu um êxodo de intelectuais de fala grega em direção ao ocidente. A Itália, por mero acaso, ficava convenientemente perto de Constantinopla, resultando no fato de que muitos desses imigrantes estabeleceram-se em cidades da Itália. Um avivamento de língua grega foi, portanto, inevitável e, juntamente com ele, uma retomada do interesse pelos clássicos gregos.

Ficará bastante evidente que um componente central da cosmovisão do Renascimento italiano é um retorno ao esplendor cultural da Antiguidade e uma marginalização das conquistas intelectuais da Idade Média. Escritores renascentistas tinham pouco respeito em relação a essas conquistas, considerando que as grandes conquistas da Antiguidade eram superiores às da Idade Média. O que era válido para a cultura em geral, também era em relação à teologia: considerava-se o antigo período clássico como algo que ofuscou totalmente a produção teológica da Idade Média, tanto em conteúdo quanto em estilo. Na verdade, o Renascimento pode ser parcialmente visto como uma reação contra o tipo de abordagem progressivamente associado às faculdades de humanidades e teologia, das universidades do norte da Europa. Irritados pela natureza técnica da linguagem e dos debates escolásticos, os escritores do Renascimento os deixaram totalmente em um engajamento direto com o texto das Escrituras e com os escritos do período patrístico.

O Escolasticismo

O escolasticismo é provavelmente um dos movimentos intelectuais mais desprezados na história da humanidade. Seu nome é derivado das grandes scholae (“escolas”) medievais, nas quais se debatiam questões de teologia e filosofia, frequentemente com tamanha complexidade que tem surpreendido bem como divertido aos historiadores posteriores. A palavra inglesa “dunce” (cheio) deriva-se de um dos maiores escritores escolásticos, Duns Scotus. Os pensadores escolásticos – os “escolásticos” – são frequentemente retratados a debater com grande seriedade, ainda que inutilmente, a respeito de quantos anjos poderiam dançar na cabeça de um alfinete. Embora esse debate em particular nunca, na verdade, tenha ocorrido, mesmo considerando-se que seu resultado teria sido, inquestionavelmente, intrigante, ele resume com precisão a maneira como o escolasticismo era considerado pela maioria das pessoas, especialmente os humanistas, no início do século XVI: uma inútil e árida especulação intelectual a respeito de trivialidades. Erasmo de Roterdã passou alguns meses, perto do final do século XV, na Universidade de Paris, dominada pelo escolasticismo. Ele escreveu extensamente a respeito de muitas coisas de Paris que detestou: os piolhos, a comida escassa, as latrinas fétidas e os debates absolutamente tediosos que angustiavam os escolásticos. Deus poderia se tornar um pepino, em vez de homem? Ou poderia Deus desfazer o passado, por exemplo, fazendo com que uma prostituta se tornasse virgem? Se havia seriedade por trás desses detrás desses debates, o sarcasmo de Erasmo de Roterdã desviou a atenção das questões em si para a maneira frívola e ridícula em que eram discutidas.
Pode-se alegar que o próprio termo “escolasticismo” foi inventado por escritores humanistas que ansiavam por desacreditar o movimento por ela representado. Já observamos que a expressão “Idade Média” foi, em grande parte, uma criação humanista cunhada por escritores humanistas do século XVI, em referência pejorativa a um insípido período de estagnação, situado entre a Antiguidade (o período clássico) e a Modernidade (o Renascimento). A Idade Média é vista como nada mais do que um intermezzo entre o esplendor cultural da Antiguidade e seu ressurgimento, o Renascimento. Da mesma forma, o termo “escolástico” (scholastici) era empregado pelos humanistas em referência, igualmente pejorativa às ideias da Idade Média. Em sua preocupação de desacreditar as ideias do período medieval, com a finalidade de aumentar os atrativos do período clássico, os humanistas se interessavam em traçar diferenças entre os diversos tipos de “escolásticos” – como os tomistas e os seguidores de Duns Scotus. Portanto, a palavra “escolasticismo” é ao mesmo tempo pejorativa e imprecisa – contudo, o historiador não pode deixar de usá-la.
Como podemos definir o escolasticismo? Da mesma forma que ocorre com muitos outros termos culturais importantes como “humanismo” e “iluminismo”, é difícil oferecer uma definição exata que faça justiça a todas as distintas posições das maiores escolas ao longo da Idade Média. Talvez, a seguinte definição prática possa ser útil: o escolasticismo é mais conhecido como movimento medieval, surgido em 1250 a 1500, que enfatizou a justificação racional da crença religiosa bem como a apresentação dessas crenças de forma sistemática. Logo, o termo “escolasticismo” não se refere a um sistema específico de crenças, mas a um modo particular de se produzir e sistematizar a teologia. Talvez seja compreensível porque, sob a ótica de seus críticos humanistas, o escolasticismo pareceu degenerar-se em nada mais do que uma lógica concentrada em detalhes pequenos e sem importância.
Entretanto, o escolasticismo fez contribuições importantes para áreas fundamentais da teologia cristã, especialmente em relação à discussão sobre o papel da razão e da lógica na teologia. Os escritos de Tomás de Aquino, Duns Scotus e Occam- frequentemente destacados como os três mais influentes autores escolásticos – contribuíram de forma impressionante para o desenvolvimento dessa área da teologia, sendo, desde essa época, considerados como marcos.
Afinal, que tipos de escolasticismos existiam? Assim como acontece com o “humanismo”, o termo “escolasticismo” define uma abordagem ou um método, em vez de um conjunto de doutrinas específicas resultantes da aplicação desse método. Portanto, há vários tipos de escolasticismos. Esta parte do capítulo irá investigar brevemente algumas de suas principais correntes ou “escolas”, conferindo particular atenção àquelas que foram relevantes, no período medieval, para o desenvolvimento teológico. Começaremos por traçar a diferenciação entre “realismo” e “nominalismo”, duas teorias do conhecimento bastante divergentes que tiveram um impacto decisivo no desenvolvimento do escolasticismo.

O realismo e o nominalismo

A diferenciação entre o realismo e o nominalismo possui uma grande importância considerável para a compreensão da teologia medieval, o que nos obriga, portanto, a analisa-la de forma mais detalhada. A fase inicial do período escolástico (c. 1200 – c. 1350) foi dominada pelo realismo, embora sua fase final (c. 1350 – c. 1500) o nominalismo fosse predominante. A diferença entre as duas correntes pode ser descrita da seguinte forma. Considera duas pedras brancas. O realismo afirma que há um conceito universal de “brancura” que essas duas pedras incorporam. Essas duas pedras brancas, em particular, possuem a característica da “brancura”. Embora as pedras as pedras brancas existam no tempo e no espaço, o conceito universal de “brancura” existe em um plano metafísico distinto. O nominalismo, porém, afirma que devemos nos concentrar em particulares. Essas duas pedras brancas existem – e não há qualquer necessidade de apelar para algum “conceito universal de brancura”.
A ideia “universal”, aqui utilizada sem qualquer definição, precisa ser melhor analisada. Pense em Sócrates. Ele é um ser humano e, portanto, um exemplo de humanidade. Agora pense em Platão e Aristóteles. Da mesma forma, são seres humanos e exemplos de humanidade. Poderíamos continuar fazendo esse tipo de raciocínio indefinidamente, nomeando quantos indivíduos desejássemos, porém, o mesmo padrão básico sempre aparece; os indivíduos – como Sócrates, Platão e Aristóteles – são exemplos particulares desse conceito universal. A característica comum da humanidade, que une esses três indivíduos, possui existência autônoma e real.
Duas grandes “escolas” desse movimento, que sofreram a influência do realismo, dominaram o início do período medieval. São elas o Tomismo e o Scotismo, no entanto, o final do escolasticismo foi dominado por outras duas grandes escolas, ambas comprometidas com o nominalismo, e não com o realismo. Geralmente são conhecidas como o “caminho moderno” (via moderna) e a “escola Agostiniana moderna” (schola Augustiniana moderna).

O caminho moderno

O termo via moderna – o “caminho moderno” – vem sendo atualmente aceito como a melhor maneira de referir-se ao movimento uma vez conhecido como “nominalismo”, o qual incluía entre seus adeptos intelectuais dos séculos XIV e XV, figuras como Guilherme de Occam, Pierre d’ Ailly, Robert Holcot e Gabriel Biel. Ao longo do século XV, o “caminho moderno” iniciou incursões significativas em muitas das universidades do norte da Europa – por exemplo, em Paris, Heidelberg e Erfurt. Além de sua filosofia nominalista, o movimento adotava uma doutrina da justificação que muitos de seus críticos rotularam como pelagiana. Em oposição a esse contexto, define-se a origem da teologia de Martinho Lutero.

A escola agostiniana moderna

No início do século XIV, um dos bastiões do “caminho moderno” foi a Universidade de Oxford. Foi também neste local que ocorreu a primeira reação negativa relevante contra o movimento. Thomas Bradwardine, que posteriormente tornou-se o Arcebispo de Cantuária, foi o responsável por essa reação. Bradwardine escreveu um livro, intitulado The case of God against Pelagius [A defesa de Deus contra Plágio], atacando de forma veemente as ideias do “caminho moderno” de Oxford. Nessa obra, ele desenvolveu uma teoria sobre a justificação que representava um retorno às expectativas de Agostinho de Hipona, encontradas em seus últimos escritos antipelagianos.
As ideias de Bradwardine seriam desenvolvidas na Inglaterra por John Wycliffe. Porém, a Guerra dos Cem Anos, de 1337 a 1453, levou a Inglaterra a um progressivo isolamento em relação ao continente europeu. As radicais ideias agostinianas associadas a Bradwardine foram adotadas no continente europeu por Gregório de Rimini, na Universidade de Paris. Ele tinha uma vantagem particularmente significativa sobre Bradwardine: Gregório era membro de uma ordem religiosa (a Ordem dos Monges Eremitas de Santo Agostinho, geralmente chamada de “Ordem dos Agostinianos”). E, da mesma forma que os monges dominicanos difundiram as perspectivas de Tomás de Aquino e os franciscanos as ideias de Duns Scotus, também os agostinianos promoveram as ideias de Gregório de Rimini. Essa transmissão da tradição agostiniana no seio da Ordem dos agostinianos, derivada de Gregório de Rimini, é progressivamente chamada de schola Augustiniana moderna ou “escola Agostiniana Moderna”. Que ideias foram essas?
Primeiro, Gregório adotou a postura nominalista na questão de regras universais. Como muitos intelectuais de seu tempo, ele tinha pouca simpatia pelo realismo de Tomás de Aquino ou de Duns Scotus. Nesse aspecto, ele tinha muito em comum com intelectuais do “caminho moderno” como Robert Holcot e Gabriel Biel. Segundo, Gregório desenvolveu uma soteriologia ou doutrina da salvação, que retratava as ideias características de Agostinho. Por exemplo, podemos perceber a ênfase em relação à necessidade da graça, a condição da decadência e pecado da humanidade, à iniciativa de Deus na justificação, bem como em relação à predestinação divina. A salvação é vista como obra exclusivamente divina, do início ao fim. Enquanto os adeptos do “caminho moderno” alegavam que os seres humanos poderiam iniciar sua justificação ao “dar o melhor de si”, Gregório insistia que somente Deus poderia desencadear o processo de justificação.
O “caminho moderno” defendia que a maior parte dos recursos necessários (mas nem todos) para a salvação eram inerentes à natureza humana. As virtudes de Cristo são exemplo de recursos que se encontram fora da natureza humana; a capacidade de resistir ao pecado e voltar-se para a virtude representa, para um escritor como Biel, um vivo exemplo de um recurso soteriológico que se encontra na própria natureza humana. Em clara oposição, Gregório de Rimini alegava que esses meios encontravam-se exclusivamente fora da natureza. Em clara oposição, Gregório de Rimi alegava que esses meios encontravam-se exclusivamente fora da natureza humana. Mesmo a capacidade de renunciar ao pecado e voltar-se para a virtude surgia por meio da ação de Deus e, não do ser humano.
É evidente que essas duas abordagens representam duas formas completamente distintas de entendimento do papel de Deus e do homem na justificação. Embora o agostianismo acadêmico de Gregório fosse particularmente associado à Ordem dos Agostinianos, nem todo monastério ou toda universidade filiados a essa ordem parece haver adotado suas ideias. No entanto, parece que, ao final da Idade Média e na iminência da Reforma, havia uma corrente de pensamento cujo caráter era bastante agostiniano. De muitos modos, os reformadores de Wittenberg, com sua particular ênfase sobre os escritos antipelagianos de Agostinho, podem ser considerados como aqueles que redescobriram e revitalizaram essa tradição.

O humanismo

Atualmente, o termo “humanismo” passou a significar uma cosmovisão que nega a existência ou a importância de Deus, ou seja, voltada a uma perspectiva exclusivamente secular. Não era o significado da palavra na época do Renascimento. A maioria dos humanistas daquele período era religiosa e preocupada com a purificação e a renovação do cristianismo, não com sua abolição. O termo “humanismo” acaba sendo, na verdade, um tanto difícil de ser definido. Em um passado recente, duas importantes linhas de interpretação desse movimento predominavam. Conforme a ótica da primeira linha, o humanismo foi um movimento voltado ao estudo de línguas e literatura clássica; de acordo com a segunda, o humanismo foi basicamente um conjunto de ideias que encerrava a nova filosofia do Renascimento.
Como ficará evidente, ambas as interpretações do humanismo apresentam sérias deficiências. Por exemplo, é inquestionável o fato de que o Renascimento assistiu o avanço do conhecimento clássico. Por toda parte, estudava-se os clássicos gregos e latinos em suas versões originais. Portanto, pode parecer que o humanismo foi essencialmente um movimento acadêmico voltado ao estudo do período clássico. Isso, porém, significa negligenciar a questão do motivo pelo qual os humanistas desejavam, em primeiro lugar, estudar os clássicos. A evidência disponível, sem dúvida, indica que esse estudo era considerado um meio voltado a um fim e não um fim em si mesmo. Esse fim era promover a eloquência na escrita e na oratória da época. Em outras palavras, os humanistas estudaram os clássicos como modelos de eloquência escrita, com a finalidade de adquirir inspiração e instrução. O aprendizado clássico e a competência filosófica eram simplesmente ferramentas utilizadas na exploração dos recursos da Antiguidade. Como é apontado com frequência, os escritos humanistas dedicados a incentivar a eloquência, tanto na escrita quanto na oratória, excedem, em muito, àqueles voltados ao conhecimento clássico e à filosofia.
De acordo com vários outros intérpretes do humanismo do século XX, o movimento incorporou a nova filosofia do Renascimento, que surgiu em reação ao escolasticismo. Logo, argumenta-se que o Renascimento foi um era platônica, ao passo que o escolasticismo foi um período aristotélico. Outros ainda alegaram que o Renascimento foi um fenômeno essencialmente contrário à religião, em antecipação ao secularismo do movimento iluminista do século XVIII.
A ambiciosa pretensão de interpretar o humanismo é confrontada por duas dificuldades fundamentais. Primeiro como vimos, o interesse primordial dos humanistas parece ser voltado ao incentivo da eloquência. Embora não seja verdadeira a afirmação de que os humanistas não deram uma contribuição significativa no campo da filosofia, permanece o fato de que se interessavam, acima de tudo, pelo mundo das letras. Logo, em comparação com as obras dedicadas à “busca da eloquência” há uma quantidade extraordinariamente reduzida de obras humanistas voltadas à filosofia. Aquelas que efetivamente tratam deste tema geralmente mostram-se um tanto amadorísticas.
Em segundo lugar, intensos estudos das obras humanistas revelaram um fato perturbador, que aponta para o caráter incrivelmente heterogêneo do “humanismo”. Muitos escritores humanistas, por exemplo, eram adeptos de Platão –, mas outros preferiram Aristóteles. Alguns humanistas italianos exibiam atitudes que pareciam ser anti-religiosas –, mas outros eram profundamente piedosos. Alguns humanistas eram republicanos – outros, porém, adotavam posições políticas diversas. Estudos recentes também têm chamado à atenção para o lado menos atraente do humanismo – a obsessão de alguns humanistas pela mágica e superstição – o que, talvez, seja difícil de harmonizar com a visão tradicional do movimento, em uma antecipação do racionalismo inerente ao movimento iluminista. Em síntese, para os estudiosos, tornou-se cada vez mais evidente que o humanismo aparentemente não possuía qualquer filosofia coerente. Não há uma ideia, filosófica ou política, que tenha dominado ou caracterizado o movimento. Pareceu a muitos que o termo “humanismo” poderia ser corado do vocabulário dos historiadores, pois não apresentava qualquer conteúdo significativo. Designar um escritor como “humanista” não significava, na verdade, transmitir qualquer informação que fosse essencial em relação a suas posturas filosófica, política ou religiosa.
Uma abordagem mais realista, que conquistou ampla aceitação nos círculos acadêmicos, é a visão do humanismo como um movimento cultural e educacional, interessado, sobretudo, em promover a eloquência em suas mais diversas formas. Seu interesse em relação à ética, à filosofia e à política são de importância secundária. Ser humanista significa, acima de tudo preocupar-se em promover a eloquência, deixando as demais questões em segundo plano.
Portanto, o humanismo é essencialmente um projeto cultural que recorria à Antiguidade Clássica como modelo de eloquência. O importante era o retorno ad fontes (o retorno “às fontes”). Esse lema latino implementou a visão do retorno da cultura moderna ocidental às fontes da Antiguidades, permitindo que suas ideias e seus valores revigorasse e renovassem aquela cultura. O período clássico deveria ser tanto um meio quanto uma regra para o Renascimento. Em relação às artes e à arquitetura, assim como em relação à palavra falada ou escrita, a Antiguidade era vista como um recurso cultural do qual o Renascimento poderia se apropriar. Logo, o humanismo estava interessado em como as ideias eram adquiridas e expressadas e não com a verdadeira substância dessas ideias. O humanista poderia ser adepto de Platão e Aristóteles – porém, em ambos os casos, as ideias envolvidas eram provenientes da Antiguidade. O humanista poderia ser um cético ou um crédulo – no entanto, ambas as posturas poderiam ser defendidas a partir da Antiguidade.

O humanismo do norte da Europa

Em termos teológicos, a forma de humanismo que provou ser particularmente importante é, sobretudo, o humanismo do norte da Europa, em vez do humanismo italiano. Portanto, devemos considerar que forma esse movimento assumiu no norte da Europa.
Torna-se cada vez mais evidente que o humanismo italiano teve influência decisiva sobre o humanismo do norte da Europa em cada estágio de seu desenvolvimento. No norte da Europa, foram identificados três canais principais da difusão dos métodos e ideais da Renascença italiana:

     1.      Por meio dos acadêmicos do norte da Europa que mudaram para o sul, na Itália, talvez para estudar em uma universidade italiana ou como parte de uma missão diplomática. Ao retornar para sua terra natal, eles trouxeram o espírito da Renascença com eles.

     2.      Por meio da correspondência dos humanistas italianos. O humanismo preocupava-se em promover a eloquência por intermédio da escrita, e o escrever cartas era visto como uma maneira de incorporar e difundir as ideias da Renascença. O volume da correspondência dos humanistas italianos com o exterior era considerável, estendendo-se à maioria das regiões do norte da Europa.

     3.      Por meio da impressão de livros que se originavam de fontes como a editora Aldine, em Veneza. Essas obras eram reimpressas por editoras do norte da Europa, particularmente em Basiléia, na Suíça. Humanistas italianos normalmente dedicavam suas obras a patrocinadores do norte da Europa, assegurando, assim, que elas seriam notadas nos círculos de maior influência.
Embora, existam três grandes variações no seio do humanismo do norte da Europa, dois ideais parecem haver alcançado ampla aceitação em todo o movimento. Primeiro, havia a preocupação comum em relação à eloquência na escrita e na oratória, seguindo do estilo do período clássico, assim como na Reforma italiana. Segundo, percebemos um projeto religioso voltado ao avivamento de toda a igreja cristã. O lema latino Christianismus renascens, que significa “o renascimento do cristianismo”, sintetiza os objetos desse projeto e mostra sua relação com o “renascimento” das letras, associado à Renascença.
Tendo em vista a importância do humanismo para a Reforma na Europa, analisaremos algumas de suas variantes locais, particularmente em relação à Suíça, França e Inglaterra.

O humanismo suíço

A Suíça talvez em decorrência de sua posição geográfica mostrou-se particularmente receptiva às ideias do Renascimento italiano. A Universidade de Viena atraía grande número de estudantes que vinham dessa região. Nos últimos anos do século XV, um golpe na faculdade de letras clássicas de Viena, em grande parte planejado por influência de Konrad Celtis, assegurou que Viena se tornasse um centro de aprendizado humanista, atraindo indivíduos como o grande escritor humanista Joachim von Watt, cujo pseudônimo era Vadian. Ele, após conquistar, em Viena, todas as honras acadêmicas possíveis, regressou a sua cidade natal de St Gallen, tornou-se líder dos cidadãos (burgomestre), em 1529. A Universidade de Basiléia também alcançou reputação semelhante na década de 1510 e tornou-se o núcleo de um grupo humanista (normalmente, chamado de “irmandade”), que se concentrava em torno de indivíduos como Thomas Wyttenbach.
O humanismo suíço tem sido objeto de intensos estudos e seu caráter básico é razoavelmente bem compreendido. O cristianismo, sob sua ótica, era considerado, acima de tudo, um estilo de vida, em vez de um conjunto de doutrinas. A reforma era, de fato, necessária, porém, estava vinculada, sobretudo, à moralidade da igreja e à necessidade de renovação moral pessoal de cada fiel. No humanismo suíço, não havia qualquer pressão no sentido de reforma doutrinária da igreja.
O caráter do humanismo suíço era intensamente moralista e considerava as Escrituras como algo que prescrevia a correta conduta moral para os cristãos e não o relato das promessas de Deus. Esse caráter apresentava uma série de implicações relevantes, em especial em relação à doutrina da justificação. Em primeiro lugar, as questões que estimularam o interesse de Martinho Lutero por essa doutrina que estavam significativamente ausentes nos círculos suíços. A justificação era algo que não despertava polêmicas. De fato, os humanistas suíços tinham receio das perspectivas de Martinho Lutero sobre a justificação, que pareciam representar uma ameaça radical à moralidade e, portanto, ao caráter distintivo de seu movimento.
A importância dessas observações está relacionada à figura de Ulrico Zuínglio, que estudou nas universidades de Viena (1498-1502) e da Basiléia (1502-1506). O programa de Reforma de Zuínglio, em Zurique, iniciado em 1519, carrega as marcas da moralidade do humanismo suíço. Agostinho, o “doutor da graça”, parece não ter papel importante no pensamento de Zuínglio, até a década de 1520 (e, mesmo depois, sua influência está relacionada principalmente à perspectiva de Zuínglio acerca dos sacramentos). Zuínglio finalmente rompeu com o moralismo do movimento humanista suíço (provavelmente, por volta de 1523, mas, com certeza, em 1525 já havia rompido), porém, até esse momento, seu programa de reforma baseava-se na perspectiva educacional moralista, tão característica das fraternidades humanistas da Suíça, pertencentes a esse período.

O humanismo francês

Na França, do século XVI, o estudo de Direito passava por um processo de radical revisão. A monarquia absolutista francesa, sob a liderança de Francisco I, com sua crescente tendência em direção à centralização administrativa, considerava a reforma legal como algo essencial para a modernização da França. Francisco I, com vistas a acelerar o processo de reforma legal, que levaria posteriormente à formulação de um sistema legal válido para toda a França, deu apoio estratégico a um grupo de acadêmicos, que se encontrava nas universidades de Bourges e Orleans e que estava envolvido com os aspectos teóricos dos códigos legais genéricos, fundamentados em princípios universais. Guillaume Budé, um pioneiro dentre estes, defendia o retorno direto ao Direito romano, como um meio, ao mesmo tempo expressivo e econômico, de responder às novas necessidades legais da França. Em oposição ao costume italiano (mos italicus) de interpretar textos legais clássicos à luz das glosas e comentários dos juristas medievais, os franceses desenvolveram um procedimento (mos gallicus) que recorria diretamente às fontes legais clássicas originais, em seu idioma original.
Uma das consequências da proposta humanista de operar diretamente ad fontes era a manifesta impaciência com glosas (anotações sobre o texto) e comentários. Esses recursos, longe de ser vistos como ferramentas úteis ao estudo, esses recursos passaram, progressivamente, a ser considerados como obstáculos ao envolvimento com o texto original. Escritores como como Bartholus e Accursius, passaram a considerar como irrelevantes as interpretações dos textos legais do classicismo romano. Funcionavam como filtros, entre o leitor e o texto, provocando distorções. À medida que a nova pesquisa acadêmica tornou-se mais confiante em suas declarações, a credibilidade de Accursius e dos demais era cada vez mais questionadas pelos humanistas. Antonio Nebrija, grande acadêmico espanhol, publicou uma detalhada descrição dos erros que havia detectado nas glosas de Accursius, ao passo que Rabelais escreveu, desonestamente, acerca das “opiniões ineptas de Accursius”.
Deve-se destacar a importância do avanço em relação à reforma. João Calvino, o futuro reformador, estudo em Bourges e Orleans, tendo chegado a Orleans provavelmente em 1528, no auge do humanismo jurídico francês. João Calvino, estudando Direito civil em Orleans e Bourges, veio a ter contato direto com um célebre adepto do movimento humanista. Esse encontro, no mínimo, fez chamado para auxiliar na codificação das “leis e éditos” de Genebra, João Calvino foi capaz de utilizar seu conhecimento sobre o sistema de Direito romano civil clássico (Corpous Iuris Civilis) para modelos de contratos, direito patrimonial e procedimento judiciário. João Calvino, porém, aprendeu muito mais com o humanismo francês.
É plausível alegar que a origem do método de João Calvino, talvez o maior comentarista bíblico e pregador de sua época, esteja em seu estudo de Direito na sofisticada atmosfera de Orleans e Bourges. Há várias indicações de que ele aprendeu com Budé sobre a necessidade de ser um competente filólogo, de fazer uma aproximação direta a um texto básico, de interpretá-lo de acordo com os parâmetros linguísticos e históricos de seu contexto e de aplica-lo as necessidades da época atual. É exatamente essa atitude que dá sustentação à exposição de João Calvino em relação às Escrituras, em especial em seus sermões, nos quais objetiva unir os horizontes das Escrituras ao contexto de sua audiência. O humanista francês forneceu a João Calvino tanto o incentivo como os instrumentos que tornaram possível a interação entre os documentos do passado e a situação da cidade de Genebra nos anos de 1550.

O humanismo inglês

A Universidade de Cambridge, na Inglaterra do início do século XVI, era provavelmente o centro humanista mais importante, embora a importância das universidades de Oxford e de Londres não deva ser subestimadas. Cambridge foi o local onde se deu o início da Reforma da Inglaterra, cujo centro ficava na “White Horse Circle” [Círculo do cavalo branco] (nome dado por causa de uma taverna, hoje demolida, que ficava perto do Queen’s College), em que indivíduos como Robert Barnes, no início da década de 1520, se reuniam para ler e debater os escritos mais recentes de Martinho Lutero. Era possível que a taverna logo recebesse o apelido de “pequena Alemanha”, assim como no futuro, o local da King Street, em Cambridge – que já foi a sede do Partido Comunista de Cambridge – seria conhecido como a “pequena Moscou”, na década de 1930.

Teólogos fundamentais

Dos diversos teólogos importantes que surgiram nesse período de intensa criatividade, os que se seguem são de interesse e importância especiais.

Anselmo da Cantuária (c. 1033 – 1109)

Anselmo de Cantuária nasceu no norte da Itália, mas logo mudou-se para a França, que ganhava fama como um centro de estudos. Rapidamente, ele aprendeu a lógica e a gramática, conquistando uma excelente reputação como professor na abadia de Norman, em Bec. Anselmo, havendo vivido no início do renascimento teológico do século XII, contribuiu de forma decisiva para o debate em duas áreas: as provas da existência de Deus e a interpretação racional da morte de Cristo na cruz. A obra Proslogion (a palavra é praticamente impossível de se traduzir) foi escrita por volta de 1079. É uma obra notável, na qual Anselmo se propõe a incumbência de formular um argumento que levaria à crença na existência e no caráter de Deus como o bem supremo. A análise resultante, normalmente conhecida como “argumento ontológico”, levou à dedução da existência de Deus a partir da afirmação de que Ele era “aquele sobre quem nada maior pode ser concebido”. Embora o raciocínio tenha sido contestado desde sua concepção, ainda é considerado um dos componentes mais intrigantes da filosofia teológica. A obra Proslogion também é relevante devido à seu nítido apelo à razão em questões teológicas, assim como por valorizar o papel da lógica. De muitas maneiras, a obra antecipa os melhores aspectos da teologia escolástica. A expressão de Anselmo fides quaerens intellectum (“a fé em busca do conhecimento”) passou a ser de uso geral.
Anselmo, após a invasão da Inglaterra pelos normandos (1066), foi convidado a assumir a função de Arcebispo de Cantuária, em 1093, assegurando, portanto, o fortalecimento da influência normanda sobre a igreja da Inglaterra. Essa não foi um fase propriamente feliz de sua vida, devido a uma série de violentas disputas de terras entre a igreja e a monarquia. Anselmo, em um período que passou trabalhando na Itália, escreveu Cur Deus homo [Porque Deus homem], talvez sua obra mais importante. Anselmo, nessa obra, busca estabelecer uma demonstração racional da necessidade de Deus em se tornar homem, assim como uma análise dos benefícios resultantes à humanidade, em consequência da encarnação e da obediência do Filho de Deus. Esse argumento, continua a ter importância fundamental para qualquer discussão acerca das “teorias da expiação” – que representam, em outras palavras, perspectivas acerca do significado da morte e ressurreição de Cristo, bem como de sua importância para a humanidade. Essa obra exibe características típicas do que há de melhor no escolasticismo: o apelo à razão, a ordenação lógica dos argumentos, a investigação incansável acerca das implicações dos conceitos e a convicção fundamental de que, no íntimo, o evangelho cristão é racional e pode ser apresentado dessa forma.

Tomás de Aquino (c. 1225 – 74)

Tomás de Aquino nasceu no castelo de Roccasecca, na Itália, e era filho mais novo do Conde Landolfo de Aquino. A julgar por seu apelido – “boi quieto” – ele era bastante corpulento. Tomás de Aquino, em 1244, ainda no final de sua adolescência, decidiu unir-se à ordem dos Dominicanos – também conhecida como a “Ordem dos Pregadores”. Seus pais se opunham a isso: eles teriam preferido que Tomás de Aquino se tornasse um beneditino e, talvez, chegasse a ser prior de Monte Cassino, uma das funções de maior prestígio na igreja medieval. Seus irmãos o mantiveram aprisionado, durante um ano, em um dos castelos da família, para encorajá-lo a mudar de ideia. Aquino, apesar da intensa oposição de sua família, por fim conseguiu fazer o que queria e tornou-se um dos mais célebres intelectuais religiosos da Idade Média. Conta-se que um de seus professores disse: “Um dia o mugido desse boi será ouvido em todo o mundo”.
Aquino iniciou seus estudos em Paris, antes de mudar para Colônia, em 1248. Em 1252, regressou para Paris para estudar teologia. Quatro anos depois, conseguiu permissão para lecionar teologia na universidade. Aquino, ao longo dos quatros anos seguintes, ensinou o evangelho de Mateus e começou a escrever a Summa contra gentiles [Suma contra os gentios]. Aquino, nessa grande obra, forneceu grandes argumentos em defesa da fé cristã, para benefício dos missionários que trabalhavam entre muçulmanos e judeus. Em 1266, deu início a sua obra mais famosa, Summa theologiae [Suma Teológica], normalmente conhecida pelo título em latim. Ele, nessa obra, desenvolveu um estudo detalhado sobre aspectos fundamentais da teologia cristã (como o papel da razão em relação à fé), bem como faz uma análise minuciosa de questões doutrinárias essenciais (como a questão sobre a divindade de Cristo). A obra divide-se em três partes, sendo a segunda parte subdividida em outras duas. A Parte I, trata-se essencialmente de Deus, o Criador; a Parte II – que se subdivide em duas seções conhecidas como prima secundae e secunda secundae (literalmente, a “primeira parte da segunda” e a “segunda parte da segunda”) –, trata da reconciliação da humanidade com Deus; e a Parte III, trata da maneira pela qual a pessoa e a obra de Cristo trazem salvação para a humanidade.
Aquino, em 6 de dezembro de 1273, declarou que não poderia mais escrever. Ele disse: “Tudo que escrevi, parece-me insignificante”. É provável que ele tenha tido algum tipo de colapso, causado talvez pelo excesso de trabalho. Ele morreu em 7 de março de 1274. Dentre as contribuições fundamentas que Aquino fez à teologia, as seguintes possuem importância especial:

·         As Cinco vias (argumentos em favor da existência de Deus);
·         O princípio da analogia, que fornece uma base teológica para o conhecimento de Deus por meio da criação;
·         A relação entre a fé e a razão.

Duns Scotus (c. 1265 – 1308)

Dun Scotus foi, sem dúvida, uma das mentes mais brilhantes da Idade Média. Em seus poucos anos de vida foi professor em Cambridge, Oxford e Paris, bem como produziu três versões de Commentary on the sentences [Comentário às sentenças]. Conhecido como “doutor das sutilezas”, devido às distinções bastante sutis que frequentemente traçava entre os possíveis significados dos termos, foi responsável por uma série de avanços de considerável importância para a teologia cristã. Somente três deles podem ser aqui destacadas:

    1.      Scotus era um detentor da teoria do conhecimento associada a Aristóteles. No início da Idade Média, predominava uma outra teoria do conhecimento, que remontava a Agostinho de Hipona, conhecida como “iluminismo”, de acordo com a qual se entendia que o conhecimento surgia da iluminação da mente humana por Deus. Essa visão, defendida por escritores como Henrique de Ghent, foi submetida a críticas devastadoras por Scotus.

     2.      Scotus considerava que a vontade divina tem primazia sobre o intelecto divino, uma doutrina comumente chamada de voluntarismo. Tomás de Aquino havia defendido a primazia do intelecto divino; Scotus abriu caminho a novas abordagens teológicas, partindo do pressuposto da prioridade da vontade divina. Um exemplo ilustra bem esse caso. Considera a ideia do mérito – isto é, de uma ação moral do ser humano, considerada digna de ser recompensada por Deus. Qual é o fundamento dessa decisão? Aquino alegava que o intelecto divino reconhecia o valor inerente do ato moral praticado pelo ser humano. Isso instruía a vontade, para que o recompensasse de forma adequada. A argumentação de Scotus seguia uma linha bastante distinta. A vontade divina de recompensar o ato moral precedia qualquer avaliação de seu valor intrínseco. Essa abordagem possui importância considerável em relação às doutrinas da justificação e da predestinação.

     3.      Scotus era defensor da doutrina da concepção imaculada de Maria, a mãe de Jesus. Tomás de Aquino havia ensinado que Maria compartilhava da condição pecadora da humanidade. Ela fora maculada pelo pecado (macula, em latim), assim como todos os demais, com exceção de Cristo. Scotus, entretanto, alegava que Cristo, em virtude de sua obra perfeita da redenção, fora capaz de manter Maria livre da mancha do pecado original. Tamanha era a influência de Scotus, que a “proposição imaculada” (do latim imácula, “livre do pecado”) tornou-se predominante até o final da Idade Média.

Guilherme de Occam (c. 1285 – 1347)

Guilherme de Occam, sob vários aspectos pode ser considerado como tenho desenvolvido algumas das linhas da argumentação associadas à Scotus. Sua defesa consistente da posição voluntarista, que estabelecia a primazia da vontade em relação ao intelecto divino, é de particular importância. No entanto, provavelmente seja sua posição filosófica que tenha lhe assegurado um permanente lugar de destaque na história da teologia cristã. Podemos destacar dois importantes elementos de seus ensinamentos:

    1. A Navalha de Guilherme de Occam, comumente designada como “o princípio da frugalidade”. Occam insistia que a simplicidade era uma virtude ao mesmo tempo teológica e filosófica. Sua “navalha” eliminava todas as hipóteses que não fossem absolutamente essenciais. Isso teve enormes implicações para sua teologia da justificação. Teólogos medievais anteriores (inclusive Tomás de Aquino) haviam alegado que Deus era levado a perdoar a humanidade pecadora por meio daquilo que era chamado um “ambiente de graça” – em outras palavras, algo sobrenatural e intermediário que Deus infundia na alma do ser humano, o qual permitia que o pecador fosse absolvido. Occam descartou essa noção como algo desnecessário e irrelevante, declarando que a justificação consistia na direta aceitação de um pecador por Deus. Não havia qualquer necessidade desse passo intermediário para a aceitação de um indivíduo por Deus. Aquilo que Tomás de Aquino alegava dar-se por meio de uma substância intermediária, Guilherme Occam declarava que ocorria de forma direta, sem qualquer intermediação de algo como um “ambiente de graça”. Assim, estava aberto o caminho para abordagens mais pessoais da justificação, como aquelas associadas à Reforma.

     2.      Guilherme de Occam era um defensor ferrenho do nominalismo. Em parte, isso resultava de seu uso da navalha: os universais foram declarados como hipóteses totalmente desnecessárias que foram, portanto, eliminadas. O crescente impacto do “caminho moderno” na Europa Ocidental muito deve a ele. Um aspecto de seu pensamento que se mostrou de importância singular é a “dialética entre os dois poderes de Deus”. Esse instrumento permitiu que Guilherme de Occam estabelecesse um contraste entre a forma como as coisas efetivamente são e a foram como poderiam ter sido. Uma discussão completa desse aspecto é feita mais adiante; para o momento, basta destacar que Guilherme de Occam teve uma contribuição decisiva em relação às discussões sobre a onipotência de Deus, as quais continuam a ser relevantes nos dias de hoje.

Erasmo de Roterdã (c. 1469 – 1536)

Desidério Erasmo é geralmente considerado como o mais importante escritor humanista do Renascimento, tendo tido, na primeira parte do século XVI, um profundo impacto na teologia cristã. Embora não fosse protestante, em nenhum sentido do termo, muito fez em prol do estabelecimento dos alicerces intelectuais da Reforma, sobretudo por meio de sua vasta produção editorial, na qual se inclui a produção do primeiro texto impresso do Novo Testamento no grego. Sua obra Enchiridion militis christiani [Manual do soldado cristão] foi um marco na área da publicação da literatura religiosa. Embora o livro tenha sido publicado pela primeira vez em 1503 e reeditado em 1509, seu verdadeiro impacto data de sua terceira reedição, em 1515. A partir dessa edição, o livro se tornou uma obra cult, passando ao que parece por vinte e três edições nos sei anos posteriores. Seu apelo era voltado aos leigos escolarizados, a quem Erasmo considerava como o recurso mais importante da igreja. Sua incrível popularidade, nos anos posteriores a 1515, torna possível sugerir que essa obra provocou uma alteração radical na percepção de que os rumores reformistas, em Zurique e Wittenberg, aconteceram pouco depois de Enchiridion haver se tornado um sucesso de vendas.
O manual desenvolvia a tese, revolucionária e altamente atrativa, de que a igreja da época poderia ser reformada mediante um retorno coletivo aos escritos dos patriarcas e da Bíblia. A leitura habitual das Escrituras é apresentada como a chave para uma nova religiosidade leiga, fundamentada na qual a igreja pode ser renovada e reformada. Erasmo concebeu essa obra como um guia para as Escrituras, voltado para os leigos, fornecendo uma exposição simples, porém, culta, a respeito da “filosofia de Cristo”. Essa “filosofia” é, de fato, um tipo de ética prática, em vez de uma filosofia acadêmica. O Novo Testamento diz respeito ao conhecimento do bem e do mal, com a finalidade de que seus leitores possam evitar o último e amar o primeiro. O Novo Testamento é a lex Christi, “a lei de Cristo”, a qual todos os cristãos são chamados a obedecer. Cristo é o modelo a quem os cristãos devem imitar. Contudo, Erasmo não via fé cristã com uma mera observância exterior de um código moral. Sua ênfase tipicamente humanista sobre a religião interior leva-o a sugerir que a leitura das Escrituras transforma seus leitores, dando-lhes uma nova motivação para amar a Deus e ao próximo.
Várias características desse livro possuem uma importância especial. Primeiro, Erasmo entende que a vitalidade futura do cristianismo se encontra nos leigos, não, no clero. O clero é visto no papel de educador, cuja função é possibilitar que os leigos alcancem o mesmo nível de entendimento alcançados pelo clero. Não há lugar para quaisquer superstições que possam dar ao lcero um status permanentemente superior ao das funções leigas. Segundo, a forte ênfase de Erasmo em relação à “religião interior” resulta em uma compreensão do cristianismo, que não faz qualquer referência à igreja – a seus ritos, a seus sacerdotes ou a suas instituições. “Por que se dar ao trabalho de confessar seus pecados a outro ser humano” – pergunta Erasmo – “apenas pelo fato de ser um sacerdote, quando pode confessá-los diretamente a Deus?”.
Erasmo, além dessas sugestões radicais, desenvolveu extensos projetos acadêmicos. Dois deles apresentam uma relevância específica para o avanço da teologia cristã:

      1.      A produção do primeiro Novo Testamento no grego. Como foi destacado anteriormente, esse fato permitiu que os teólogos tivessem um acesso direto ao texto original do Novo Testamento, o que provocou resultados explosivos.

     2.      A produção de edições confiáveis das obras patrísticas, inclusive dos escritos de Agostinho de Hipona. Assim, os teólogos tiveram acesso aos textos integrais dessas grandes obras, em vez de só contar com citações de segunda mão, conhecidas como “sentenças”, frequentemente descontextualizadas. Em consequência disso, uma nova compreensão da teologia de Agostinho de Hipona começou a se desenvolver, trazendo consequências significativas para o avanço teológico do período.
Processos cruciais da teologia

No período analisado, o grande renascimento que ocorreu na teologia concentrava-se em torno de uma série de questões, dentre elas as seguintes são particularmente relevantes. Neste ponto, elas serão apenas destacadas brevemente. Os seis primeiros avanços são associados ao escolasticismo, os dois últimos ao humanismo.

A consolidação do legado patrístico

Quando a Idade das Trevas chegou ao fim, a tendência entre os teólogos cristãos era de começar do ponto em que os escritores patrísticos haviam parado. Pelo fato de a língua falada pela igreja ocidental ser o latim, era natural que seus teólogos se voltassem para a vasta coleção das obras de Agostinho de Hipona e as tomassem como ponto de partida para suas investigações teológicas. A obra de Pedro Lombardo, Sentences [Sentenças], pode ser considerada como compilação crítica de citações (as “Sentenças”), em grande parte extraídas dos escritos de Agostinho de Hipona, sobre os quais esperava-se que os teólogos medievais fizessem comentários.

A exploração do papel da razão na teologia

A nova preocupação em estabelecer a teologia cristã sobre um alicerce totalmente confiável levou à deliberada exploração do papel da razão na teologia, uma característica central e distintiva do escolasticismo. À medida que avançava o renascimento do início da Idade Média, dois temas passaram a dominar o debate teológico: a necessidade de sistematização e expansão da teologia cristã e a necessidade de demonstração da inerente racionalidade dessa teologia. Embora a maior parte da teologia medieval primitiva não passasse de uma repetição das ideias de Agostinho de Hipona, havia uma crescente pressão no sentido de sistematiza-las e de expandi-las. Porém, como se poderia fazer isso? Havia uma crescente pressão no sentido de necessidade premente de se criar uma “teoria do método”. Fundamentado em qual sistema filosófico poder-se-ia demonstrar a racionalidade da teologia cristã?
O escritor Anselmo de Cantuária, no século XI, deu corpo a essa crença fundamental da racionalidade da fé cristã por meio de duas frases que passaram a ser e ligada ao seu nome: fides quaerens intellectum (“a fé em busca do conhecimento”) e credo ut intellegam (“creio que possa conhecer”). Ele basicamente percebeu que, ainda que a fé fosse anterior ao conhecimento, seu conteúdo era, todavia, racional. Essas fórmulas decisivas estabeleciam a prioridade da fé sobre a razão, assim como afirmavam a plena racionalidade da fé. Anselmo, no prefácio de seu livro Monologium, declarou abertamente que nada demonstraria em relação às Escrituras que fosse baseado somente nas próprias Escrituras; em vez disso, ele demonstraria tudo o que pudesse fundamentado na “evidência racional e à luz natural da verdade”. Mesmo Anselmo não sendo um adepto do racionalismo, a razão tem limites!
O século XI e o início do século XII assistiram a uma convicção progressiva de que a filosofia poderia ser um valioso recurso para a teologia cristã em dois níveis distintos. Em primeiro lugar, ela poderia demonstrar a racionalidade da fé e, assim, defendê-la frente aos seus críticos não-cristãos. Em segundo lugar, ela proporcionava maneiras de investigar e de organizar sistematicamente os artigos de fé, de forma que pudessem ser mais bem compreendidos. Porém, que filosofia seria essa? A resposta veio por intermédio da redescoberta dos escritos de Aristóteles, no final do século XII. Aristóteles, por volta de 1270, era conhecido como “O Filósofo”. Suas ideias passaram a dominar o pensamento teológico, apesar da ferrenha oposição de parte de setores mais conservadores.
As ideias de Aristóteles, por intermédio da influência dos escritores como Tomás de Aquino e Duns Scotus, firmaram-se como o melhor meio de consolidação e desenvolvimento da teologia cristã. As ideias da teologia cristã foram, assim, organizadas e inter-relacionadas de forma sistemática, fundamentadas nos pressupostos aristotélicos. A racionalidade da fé cristã foi igualmente demonstrada fundamentada nas ideias de Aristóteles. Portanto, algumas das famosas “provas” da existência de Deus apresentadas por Tomás de Aquino baseiam-se, na verdade, em princípios da física aristotelina, em vez de critérios distintamente cristãos.
A princípio, esse desenvolvimento foi bem recebido por muitos que o viam como um recurso capaz de proporcionar importantes meios de defesa da racionalidade da fé cristã – uma disciplina que, depois, passou a ser conhecida como “apologética”, derivada da palavra grega apologia (defesa). A obra de Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, é um excelente exemplo de uma obra teológica que emprega o aristotelianismo como uma filosofia comum, compartilhada por cristãos e muçulmanos, que permitiria à fé cristã ser explicada de forma atrativa em meio do mundo islâmico. Em certos momentos, o argumento de Tomás de Aquino parece funcionar no seguinte sentido: se você é capaz de concordar com as ideias de Aristóteles, expostas nessa obra, então você deve se tornar um cristão. Como Aristóteles gozava de alta reputação em meio a muitos acadêmicos muçulmanos do período, essa atitude de Tomás de Aquino pode ser encarada como uma forma de exploração do potencial apologético daquele filósofo. Essa inovação passou a ser objeto de preocupação, por parte de alguns escritores medievais posteriores, como Hugolino de Orvieto. De acordo com esses críticos, uma série de critérios cruciais da fé cristã parecia haver sido deixada de lado, em consequência da crescente dependência em relação às ideias e métodos de um filósofo pagão. Particular receio se concentrava em torno da doutrina da justificação, em relação à qual as ideias éticas de Aristóteles vieram a desempenhar um papel significativo. A noção da “justiça de Deus” passou a ser discutida segundo o conceito aristoteliano de “justiça distributiva”. Aqui, o conceito de “justiça” (iustitia) foi definido em termos de “dar a cada um o que é de direito”. Isso parecia conduzir a uma doutrina da justificação pelo mérito. Em outras palavras, a justificação se dava fundamentado no direito de cada um, em vez da graça. Percebe-se facilmente que essa preocupação estava por trás da crescente animosidade de Martinho Lutero em relação a Aristóteles, bem como de seu futuro rompimento com as doutrinas escolásticas sobre a justificação.

O desenvolvimento da teologia dos sacramentos

A igreja primitiva havia sido relativamente vaga em relação à discussão dos sacramentos. Havia pouco consenso, tanto em relação à definição de “sacramento” como os itens que deveriam ser incluídos na lista de sacramentos. Havia consenso geral em relação ao batismo e à eucaristia; infelizmente, havia pouco consenso com referência ao resto. Entretanto, a igreja, com o renascimento teológico da Idade Média, passaria a desempenhar um papel cada vez mais importante na sociedade. Havia uma nova pressão para que a igreja amparasse seus atos litúrgicos em bases intelectuais sólidas, consolidando os aspectos teóricos do culto religioso. Em consequência, a teologia dos sacramentos apresentou um avanço significativo ao longo desse período. Chegou-se a um consenso com referência à definição do termo sacramento, bem como em relação à quantidade e às características específicas desses sacramentos.

O desenvolvimento da teologia da graça

Um elemento central do legado agostiniano foi o surgimento de uma teologia em relação à graça. Entretanto, a teologia da graça desenvolvida por Agostinho de Hipona havia sido apresentada em um contexto polêmico. Agostinho de Hipona, em outras palavras, havia sido obrigado a elaborar sua teologia da graça no calor dos debates, frequentemente em resposta aos desafios e às provocações de seus adversários.
Disso resultou o fato de que seus escritos sobre esse tema normalmente não eram sistematizados. Agostinho de Hipona, ocasionalmente, estabelecia certas diferenciações em resposta às necessidades do momento, havendo falhado em relação ao desenvolvimento de uma base teológica adequada para, no mínimo, algumas delas. Os teólogos da Idade Média consideravam-se encarregados da tarefa de consolidar a doutrina da graça que fora criada por Agostinho de Hipona, amparando-a em bases mais sólidas e explorando suas consequências. Em consequência disso, as doutrinas da graça e da justificação evoluíram consideravelmente nesse período, fixando as bases para os debates da Reforma em torno desses temas centrais.

O papel de Maria no plano da Salvação

O interesse inédito pelas questões da graça e da justificação levou a uma nova preocupação em relação à compreensão do papel de Maria, a mãe de Jesus Cristo, no plano da salvação. Um crescente interesse na devoção a Maria, vinculado a uma intensa reflexão teológica com referência à natureza do pecado original e da redenção, levou a mariologia (isto é, a área da teologia que trata do papel de Maria) sobre uma base mais consistente de que até o momento, está associado a muitas delas. Surgiu um intenso debate entre os “maculatistas” (defensores da tese de que Maria estava sujeita ao pecado original, como todos os demais seres humanos) e os “imaculatistas” (defensores da tese de que ela havia sida preservada da mácula do pecado original). Havia também uma grande polêmica em relação ao fato de ser ou não admissível dizer que Maria era “co-redentora” (isto é, se ela devia ou não ser considerada como um agente da redenção, assim como Jesus Cristo).

Retorno imediato às fontes da teologia cristã

Um elemento central do programa humanista era um retorno às clássicas fontes greco-romanas, o germe da cultura europeia ocidental. O equivalente teológico desse elemento era o retorno direto às fontes primitivas da teologia cristã, sobretudo em relação ao Novo Testamento. Esse projeto mostrou-se de extrema importância, como será posteriormente analisado. Uma de suas consequências mais significativas foi à valorização da importância fundamental das Escrituras como instrumento teológico. A medida que aumentava o interesse pelas Escrituras, tornava-se mais evidente a inadequação das versões latinas, existentes naquele período, das Escrituras. A principal delas era a “Vulgata”, versão latina da Bíblia que havia alcançado uma ampla aceitação ao longo da Idade Média. Conforme as traduções eram revisadas, especialmente a Vulgata, tornou-se evidente o fato de que uma revisão teológica era inevitável. Alguns ensinamentos pareciam estar baseados em traduções incorretas. O surgimento das técnicas textuais e filosóficas do humanismo viria a expor as lastimáveis discrepâncias entre a Vulgata e os textos que se pretendera traduzir – abrindo, em consequência, o caminho para a reforma doutrinária. É por esse motivo que o humanismo possui uma importância decisiva para o desenvolvimento da teologia medieval: por haver demonstrado a falibilidade da Vulgata – e, consequentemente, ao que parecia das teologias que nela se baseavam. A base bíblica do escolasticismo parecia estar reunindo à medida que o humanismo descobria um erro após o outro na tradução da Vulgata. A seguir, exploraremos ainda mais essa questão, pois, indubitavelmente, representa um dos avanços mais significativos na história da teologia cristã daquela época.

A crítica à Vulgata

O projeto literário e cultural do humanismo pode ser sintetizado no lema ad fontes – “voltar às fontes originais”. O “filtro” representado pelos comentários medievais – quer em relação aos textos legais quer à Bíblia – foi posto de lado com a finalidade de que os humanistas pudessem se envolver diretamente com os textos originais. Aplicado à igreja cristã, o lema ad fontes representava um retorno direto às obras-mestras do cristianismo – aos autores patrísticos e, sobretudo, a Bíblia, estudada em línguas de origem. Isso exigia um acesso direto ao texto do Novo Testamento no grego.
A primeira edição grega do Novo Testamento foi produzida por Erasmo, em 1516. O texto de Erasmo não era tão confiável como deveria: ele tivera acesso somente a quatro manuscritos para a maior parte do Novo Testamento, bem como apenas um manuscrito para sua parte final, o livro do Apocalipse. Por coincidência, o manuscrito deixava de fora cinco versículos, os quais tiveram de ser traduzidos para o grego pelo próprio Erasmo, a partir da versão latina da Vulgata. Entretanto, essa edição foi um marco literário. Pela primeira vez, os teólogos tinham a chance de comprar o texto original do Novo Testamento, em grego, com sua versão Vulgata, posterior, em latim.
Erasmo, baseando-se em estudos anteriormente feitos pelo humanista italiano, Lorenzo Valla, demonstrou que a tradução registrada na Vulgata de vários textos importantes do Novo Testamento não se justificava. Como uma série de práticas e crenças da igreja medieval eram fundamentadas nesses textos, as alegações de Erasmo foram vistas com receio e alarme por muitos católicos conservadores (os quais desejavam a manutenção dessas práticas e crenças) e, na mesma proporção, com um enorme prazer pelos reformadores (os quais desejavam eliminá-las). Três exemplos clássicos dos erros encontrados na Vulgata demostrarão a relevância dos estudos bíblicos realizados por Erasmo:

     1.      Grande parte da teologia medieval justificava a inclusão do matrimônio na lista de  sacramentos, tomando por base um texto do Novo Testamento que – pelo menos, na versão Vulgata – falava do casamento como um sacramentum (Ef 5:31,32). Erasmo destacou que a palavra grega (mysterion), traduzida como “sacramento”, significava simplesmente como “mistério”. Não havia qualquer referência ao fato do matrimônio ser um sacramento. Um dos textos clássicos, usados pelos teólogos medievais para justificar a inclusão do matrimônio na lista de sacramentos, tornou-se, dessa forma, praticamente imprestável.

     2.      A Vulgata traduziu as palavras abertas do ministério de Jesus (Mt 4:17) como “penitenciem-se, porque está próximo o Reino dos Céus”. Essa tradução sugeria a existência de uma direta correlação entre a vinda do Reino dos Céus e o sacramento da penitência. Erasmo, mais uma vez, baseando-se em Valla, advertiu que o texto grego deveria ser traduzido como “arrependam-se, porque está próximo o Reino dos Céus”. Em outras palavras, enquanto a Vulgata parecia referir-se à prática exterior (o sacramento da penitência), Erasmo insiste que a referência era em relação à atitude psicológica interior do indivíduo – a atitude de “estar arrependido”. Uma vez mais, era desafiada uma justificativa relevante do sistema sacramental adotado pela igreja medieval.

      3.      De acordo com a Vulgata, o anjo saudou Maria como “aquela que é cheia de graça” (gratia plena) (Lc 1:28), sugerindo, dessa maneira, a imagem de um reservatório cheio de graça, que poderia ser invocado sempre que necessário. Contudo, como Erasmo advertiu, o texto grego original simplesmente queria dizer “a favorita” ou “aquela que encontrou graça”. Maria era alguém que havia encontrado graça diante de Deus e não, necessariamente, alguém que poderia conceber graça aos outros.

Essas descobertas diminuíram a credibilidade atribuída à versão Vulgata e abriram caminho para uma revisão teológica, fundamentada em um melhor entendimento do texto bíblico. Também demonstrou a importância do academiscismo bíblico em relação à teologia. Não se poderia admitir que a teologia estivesse fundamentada em erros de tradução! Dessa maneira, a partir da segunda década do século XVI, foi reconhecida a vital importância dos estudos acadêmicos da Bíblia para a teologia cristã. Isso também levou às inquietação teológicas da Reforma.
Agora, nossa atenção volta-se para o fascinante tema da teologia bizantina, que floresceu na Europa Oriental ao longo da Idade Média. Embora uma questão de espaço impeça uma discussão detalhada acerca de seus temas e teólogos principais, analisaremos algumas de suas características mais relevantes.

A teologia bizantina

A teologia bizantina recebe esse nome por causa da cidade grega de Bizâncio, escolhida por Constantino como local de sua nova capital, em 330, quando seu nome foi mudado para Constantinopla (“cidade de Constantino”). Contudo, o antigo nome prevaleceu e deu nome ao estilo teológico característico, que floresceu nessa região até a queda de Constantinopla, em 1453, pela invasão de islâmicos. Deve-se destacar que Constantinopla não era o único centro do pensamento cristão no Mediterrâneo Oriental. O Egito e a Síria haviam sido, por um certo período, centros de reflexão teológica. Entretanto, à medida que aumentava a concentração do poder político em torno da cidade imperial também crescia, na mesma proporção, seu status como centro teológico. No período de Justiniano (527-56), a teologia bizantina começou a despontar como uma força intelectual de grande importância. À medida que as igrejas do oriente e do ocidente progressivamente se afastavam uma da outra (um processo que havia começado muito antes do cisma final, em 1054), os intelectuais bizantinos, por seu lado, frequentemente enfatizavam as divergências da teologia ocidental (por exemplo, com relação à cláusula filioque), reforçando assim a diferenciação de sua abordagem por intermédio de escritos polêmicos. Os teólogos bizantinos, por exemplo, tinham a tendência de entender a salvação principalmente no sentido de divinização, em vez de recorrer às categorias legais e relacionais do ocidente. Além disso, ficavam perplexos com as doutrinas do purgatório, que ganhavam força nos círculos católicos ocidentais. Portanto, ao longo da Idade Média, qualquer tentativa de chegar a um consenso entre o ocidente e o oriente era dificultada por uma complexa rede de fatores de ordem política, histórica e teológica. Até período da queda de Constantinopla, as diferenças entre oriente e ocidente permaneciam maiores do que nunca.
Com a queda de Bizâncio, as lideranças intelectuais e políticas da igreja ortodoxa transferiram-se para a Rússia. Os russos, no século X, haviam se convertido por meio da obra de missões bizantinas tomando o partido dos gregos, no cisma de 1054. Moscou e Kiev, até o final do século XV, haviam se estabelecido como sólidos patriarcados, cada um deles com seu estilo característico de teologia ortodoxa.
Para se compreender a natureza peculiar da teologia bizantina é necessário considerar seu caráter. Os teólogos bizantinos não estavam particularmente interessados em sistematizar a fé cristã. Conforme sua ótica, a teologia cristã era algo que lhes fora “dado” e que, portanto, precisa ser defendido de adversários e explicado a seus adeptos. A noção de “teologia sistemática” era um tento estranha ao caráter geral bizantino. Mesmo João de Damasco (c. 675 – c. 749), cuja obra de fide orthodoxa [De fé ortodoxa], de grande importância na consolidação de uma teologia cristã distintamente oriental, é visto como um defensor da fé, em vez de um intelectual teórico ou criativo.
Pode-se considerar que a teologia bizantina permaneceu fiel a um princípio originalmente criado por Atanásio, em sua obra de incarnatione [Da encarnação], que afirmava que a teologia era a expressão da mente dos santos. Assim, a teologia bizantina (inclusive suas gerações atuais, tanto da igreja ortodoxa grega quanto da russa) é fortemente orientada no sentido da noção de paradosis (“tradição”), em especial os escritos dos patriarcas gregos. Escritores como Gregório de Nissa, Máximo, o Confessor, e o autor que adotou o pseudônimo de “Dionísio, o areopagita” têm importância especial nesse aspecto.
Duas controvérsias são particularmente importantes. A primeira delas, que surgiu no período de 725-842, é normalmente conhecida como controvérsia iconoclasta (“destruição de imagens”). Ela se originou em razão de uma decisão do imperador Leão III (717-42) de destruir as imagens sagradas, fundamentada no argumento de que elas eram obstáculos à conversão dos judeus e muçulmanos. A controvérsia era, sobretudo, de cunho político, embora houvesse algumas questões teológicas sérias em jogo, principalmente a discussão sobre até que ponto a doutrina da encarnação justificava a representação de Deus em forma de imagens.
A segunda controvérsia, que teve início no século quatorze, concentrava-se na questão do hesicasmo (do grego: heyschia = silêncio), um estilo de meditação por meio dos exercícios físicos, que capacitava seus fiéis a ver a “luz divina” com os próprios olhos. O hesicasmo enfatizava grandemente a ideia de “paz interior” como meio de alcançar uma visão interior imediata de Deus. Esse método era particularmente associado a escritores como Simeão, o novo teólogo, e Gregório Palamas (c. 1296 – 1359), que foi eleito Arcebispo de Tessalônica, em 1347. Seus opositores alegavam que seus métodos tendiam a minimizar a diferença que existia entre Deus e as criaturas e eram particularmente alarmantes por sugerir que Deus poderia ser “visto”.
Palamas, em resposta às críticas, desenvolveu a doutrina hoje geralmente conhecida como “palamismo”, que trata um distinção entre as energias divinas e a essência divina. A distinção permitiu que Palamas defendesse a abordagem hesicástica, por meio da afirmação de que a mesma capacitava os fiéis a encontrar as divinas energias, mas não, a invisível e inefável essência divina. Os fiéis não podem participar diretamente da divina essência; entretanto, são capazes de participar diretamente das energias não criadas, que são a forma por meio da qual Deus se une a seus fiéis. A teologia de Palamas foi particularmente adotada e desenvolvida pelo teólogo leigo Nicolas Cabasilis (c. 1320 – c. 1390), cuja obra Life in Christ [Vida em Cristo] permanece um clássico da espiritualidade bizantina. Sua obra foi retomada mais recentemente por escritores neopalamitas, como Vladimir Lossky e John Meyendorff.

Ficará evidente, a partir do material apresentado neste capítulo, que a teologia cristã, tanto oriental quanto ocidental, experimentou avanços significativos ao longo da Idade Média e do Renascimento. As posteriores gerações de teólogos consideram o período como um marco significativo em relação a uma série de áreas de reflexão teológica, sendo atribuída importância contínua a vários dos autores desse período. A ascensão e queda de Bizâncio são de particular importância para a plena compreensão do desenvolvimento posterior da igreja ortodoxa na Rússia e na Grécia, da mesma forma que o surgimento do escolasticismo e do humanismo foram de grande importância para a formação da teologia ocidental.

Fonte: teologia sitemática Alister McGrath