Em 2005,
boa parte do mundo acompanhou com vivo interesse os acontecimentos dramáticos
ligados à morte de João Paulo II e à eleição do seu sucessor, Bento XVI.
Qualquer que seja o entendimento que se tenha a respeito dos líderes supremos
do catolicismo, o fato é que os papas são personagens muito importantes no
mundo atual, ocupam enorme espaço na mídia e suas ações transcendem a área
especificamente religiosa para produzir efeitos no âmbito político e social.
Tais razões, entre outras, justificam o estudo dessa poderosa e influente
instituição.
1.
Considerações bíblicas
Do ponto de vista protestante, o papado não é uma
instituição de origem divina, mas resultou de um longo e complexo processo
histórico. As Escrituras não apontam esse ofício como uma ordenança de Cristo à
sua igreja. É verdade que o Senhor proferiu a Pedro as bem conhecidas palavras:
"Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mt
16.18). Todavia, isto está muito longe de declarar que Pedro seria o chefe
universal da igreja (o primado de Pedro) e que a sua autoridade seria
transmitida aos seus sucessores (sucessão apostólica). As primeiras gerações de
cristãos não entenderam as palavras de Cristo dessa maneira. Tanto é que não se
vê em todo o Novo Testamento qualquer noção de que Pedro tenha ocupado uma
função formal de liderança na Igreja Primitiva. No chamado "Concílio de
Jerusalém", narrado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, isso não
aconteceu, e o próprio Pedro não reivindica essa posição em suas duas
epístolas. Antes, ele se apresenta como apóstolo de Jesus Cristo e como um
presbítero entre outros (1 Pe 1.1; 5.1).
Mais difícil ainda é estabelecer uma relação inequívoca entre
Pedro e os bispos de Roma. Os historiadores não encontram uma base
absolutamente segura para afirmar que Pedro sequer tenha estado em Roma, quanto
mais para admitir que ele tenha sido o primeiro bispo daquela igreja. Ademais,
é um fato bem estabelecido que não houve episcopado monárquico no primeiro
século, no âmbito do cristianismo. As igrejas eram governadas por colegiados de
bispos ou presbíteros (ver Atos 20.17 e 28; Tito 1.5 e 7).
2.
Origens da instituição
Ao mesmo tempo, não se pode deixar de reconhecer que ainda na
Igreja Antiga os bispos de Roma alcançaram grande preeminência, que o papado em
muitas ocasiões prestou serviços crucialmente relevantes à Igreja e à sociedade
e que muitos papas foram homens de grande piedade, integridade moral, saber
teológico e habilidade administrativa. Ao longo dos séculos, muitos dos
principais eventos da história do cristianismo nas áreas da teologia,
organização eclesiástica e relações entre a Igreja e a sociedade tiveram
conexão com a instituição papal. Originalmente, a palavra grega papas ou a
latina papa foi aplicada a altos oficiais eclesiásticos de todos os tipos,
especialmente aos bispos. A partir de meados do quinto século passou a ser
aplicada quase que exclusivamente aos bispos de Roma. Foram múltiplos e
complexos os fatores que levaram ao reconhecimento de que esses bispos detinham
autoridade suprema sobre a Igreja ocidental.
Em primeiro lugar, há que se destacar a importância crescente da
igreja local de Roma desde o primeiro século. O livro de Atos dos Apóstolos
termina com a chegada de Paulo a Roma. O apóstolo aos gentios escreveu a
principal de suas epístolas a essa igreja e no segundo século surgiu uma
tradição insistente de que tanto Paulo como Pedro, os dois apóstolos mais
destacados, haviam sido martirizados naquela cidade. Além disso, já numa época
remota a igreja de Roma tornou-se a maior, a mais rica e a mais respeitada de
toda a cristandade ocidental. Outro fator que contribuiu para a ascendência da
igreja romana e do seu líder foi a própria centralidade e importância da antiga
capital do Império Romano. Ao contrário da região oriental, em que várias
igrejas (Alexandria, Jerusalém, Antioquia e Constantinopla) competiam pela
supremacia em virtude de sua antigüidade e conexões apostólicas, no Ocidente a
igreja de Roma desde o início foi praticamente a líder inconteste. Outrossim, a
partir de Constantino muitos imperadores romanos fizeram generosas concessões
àquela igreja, buscaram o conselho dos seus bispos e promulgaram leis que
ampliaram a autoridade dos mesmos.
Outro elemento importante é que desde cedo à igreja romana e os
seus líderes reivindicaram, direta ou indiretamente, certas prerrogativas
especiais. No final do primeiro século (ano 96), o bispo Clemente enviou em
nome da igreja de Roma uma carta à igreja de Corinto para aconselhá-la e
exortá-la quanto a alguns problemas que a mesma estava enfrentando. Um século
depois, o bispo Vítor (189-198) exerceu considerável influência na fixação de
uma data comum para a Páscoa, algo muito importante face à centralidade da
liturgia na vida da Igreja. As consultas entre outros bispos e Roma também
datam de uma época antiga, embora a primeira decretal oficial (carta normativa
de um bispo de Roma em resposta formal à consulta de outro bispo) só tenha
surgido em 385, com o papa Sirício. Por volta de 255, o bispo Estêvão utilizou
a passagem de Mateus 16.18 para defender as suas idéias numa disputa com
Cipriano de Cartago. E Dâmaso I (366-384) tentou oferecer uma definição formal
da superioridade do bispo romano sobre todos os demais.
3. Alguns
papas notáveis
Essas raízes da supremacia eclesiástica romana foram alimentadas
pelas atividades capazes de muitos papas. No quinto século, destacou-se
sobremaneira a figura de Leão I (440-461), considerado por muitos "o
primeiro papa". Leão exerceu um papel estratégico na defesa de Roma contra
as invasões bárbaras e escreveu um importante documento teológico sobre a
pessoa de Cristo (o Tomo) que exerceu influência decisiva nas resoluções do
Concílio de Calcedônia (451). Além disso, ele defendeu explicitamente a
autoridade papal, articulando mais plenamente o texto de Mateus 16.18 como
fundamento da autoridade dos bispos de Roma como sucessores de Pedro. Seu
sucessor Gelásio I (492-496) expôs a célebre teoria das duas espadas: dentre os
dois poderes legítimos que Deus criou para governar no mundo, o poder
espiritual - representado pelo papa - tinha supremacia sobre o poder secular
sempre que os dois entravam em conflito.
O apogeu do papado antigo ocorreu no pontificado do notável
Gregório I ou Gregório Magno (590-604), o primeiro monge a ocupar o trono
papal. Sua lista de realizações é impressionante. Ele supervisionou as defesas
romanas contra os ataques dos lombardos, realizou complicadas negociações com o
imperador bizantino, saneou as finanças da Igreja e reorganizou os limites e
responsabilidades das dioceses ocidentais. Ele foi também um dedicado estudioso
das Escrituras: suas exposições bíblicas, especialmente um comentário do livro
de Jó, foram muito lidas em toda a Idade Média. Seus escritos sobre os deveres
dos bispos deram forte ênfase ao cuidado pastoral como uma atividade
prioritária. Ele reformou a liturgia, regularizou as celebrações do calendário
cristão e promoveu a música sacra ("canto gregoriano"). Finalmente, Gregório
foi um grande promotor de missões, enviando missionários para vários centros
estratégicos do norte e do oeste da Europa e expandindo a área de jurisdição do
papado.
Um momento especialmente significativo na evolução do papado
ocorreu no Natal do ano 800, quando o papa Leão III coroou Carlos Magno como
Sacro Imperador Romano. A esta altura, a complexa associação dos elementos
citados (e outros mais) havia criado uma situação na qual o bispo romano era
amplamente considerado o principal personagem eclesiástico do Ocidente, bem
como o representante do cristianismo ocidental junto ao Oriente. Algumas
décadas antes, o pai de Carlos Magno havia cedido à Igreja os amplos
territórios do centro e norte da Itália que vieram a constituir os estados pontifícios.
Isso fez dos papas governantes seculares como os demais soberanos europeus. Por
vários séculos, os papas teriam um relacionamento estreito e muitas vezes
altamente conflitivo com esses governantes. Mas a sua autoridade como líderes
máximos da Igreja Ocidental não seria questionada.
4.
Decadência e renovação
O papado também teve seus períodos sombrios, marcados por
imoralidade e corrupção. Um desses períodos ocorreu entre o final do século IX
e o início do século XI, quando a instituição papal foi controlada por
poderosas famílias italianas. A história revela que um terço dos papas dessa
época morreu de forma violenta: João VIII (872-882) foi espancado até a morte
por seu próprio séquito; Estêvão VI (885-891), estrangulado; Leão V (903-904),
assassinado pelo sucessor, Sérgio III (904-911); João X (914-928), asfixiado; e
Estêvão VIII (928-931), horrivelmente mutilado, para não citar outros fatos
deploráveis. Parte desse período é tradicionalmente conhecida pelos
historiadores como "pornocracia", numa referência a certas práticas
que predominavam na corte papal.
A partir de meados do século XI, surgiram vários papas
reformadores que procuraram moralizar a administração da Igreja, lutando contra
vários males que a assolavam. O mais notável foi Hildebrando ou Gregório VII
(1073-1085), que se notabilizou por sua luta contra a simonia, ou seja, o
comércio de cargos eclesiásticos, e ficou célebre por sua confrontação com o
imperador alemão Henrique IV. Ele escolheu como lema do seu pontificado o texto
de Jeremias 48.10: "Maldito aquele que fizer a obra do Senhor
relaxadamente". Todavia, o ápice do poder papal ocorreu no pontificado de
Inocêncio III (1198-1216), considerado o papa mais poderoso de todos os tempos,
aquele que, mais do que qualquer outro, concretizou o ideal da
"cristandade", ou seja, uma sociedade plenamente integrada sob a
autoridade dos reis e especialmente dos papas. Ele foi o primeiro a utilizar o
título "Vigário de Cristo", ou seja, o papa era não somente o
representante de Pedro, mas do próprio Senhor. Seus sucessores continuaram por
algum tempo a fazer ousadas reivindicações de autoridade sobre toda a
sociedade, sem, contudo, transformá-las em realidade como o fizera Inocêncio.
5. O fim
do período medieval
Novo período de declínio e desmoralização do papado ocorreu no
século XIV e início do século XV. Primeiro, os papas residiram na cidade de
Avinhão, ao sul da França, por mais de setenta anos (1305-1378), colocando-se
sob a influência dos reis franceses. Esse período ficou conhecido como "o
cativeiro babilônico da Igreja". Em seguida, por outros quarenta anos
(1378-1417), houve dois e finalmente três papas simultâneos (em Roma, Avinhão e
Pisa), no que ficou conhecido como "O Grande Cisma". Essa situação
embaraçosa foi sanada por vários concílios reformadores, especialmente o de
Constança, que reivindicaram autoridade igual ou mesmo superior à dos papas. Em
reação, estes reafirmaram ainda mais enfaticamente a sua autoridade suprema
sobre a Igreja.
O final do século XV e início do século XVI testemunhou o
pontificado dos chamados "Papas do Renascimento", os quais, ao
contrário de muitos de seus predecessores ou sucessores, tiveram escassas
preocupações espirituais e pastorais. Como o papa Alexandre VI (1492-1503), o
espanhol Rodrigo Borja dedicou-se prioritariamente a promover as artes e a
embelezar a cidade de Roma; Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro,
comandando pessoalmente o seu exército; e Leão X (1513-1521) teria dito ao ser
eleito: "Agora que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo". Foi ele
quem despertou a indignação do monge agostiniano Martinho Lutero ao autorizar
uma venda especial de indulgências na Alemanha para concluir as obras da
Catedral de São Pedro. O resultado dessa indignação é conhecido de todos.
6. Os
papas da Contra-Reforma
A Reforma Protestante do século XVI despertou a cúpula da Igreja
Católica do estado de letargia espiritual e omissão pastoral em que se
encontrava. A reação católica teve duas manifestações complementares. Por um
lado, Roma empenhou-se em combater o novo movimento, detendo o seu crescimento
e procurando suprimi-lo onde fosse possível, como aconteceu na Espanha e na
Polônia. Esse esforço recebeu o nome de "Contra-Reforma". Por outro
lado, a Igreja Romana, consciente das distorções espirituais e morais apontadas
pelos reformadores, fez uma autocrítica rigorosa e um esforço sério no sentido
de corrigir os seus erros, aperfeiçoar a sua estrutura e explicitar melhor a sua
fé. Esse aspecto é denominado pelos historiadores de "Reforma
Católica". Nos dois esforços, os papas tiveram uma atuação destacada.
Até o início da década de 1530, o trono pontifício continuou a ser
ocupado por homens excessivamente envolvidos em questões seculares e políticas.
Essa situação mudou quando Alessandro Farnese tornou-se o papa Paulo III
(1534-1549). Farnese nomeou uma comissão de cardeais que avaliou a situação da
Igreja e propôs medidas saneadoras, entre elas que o papado se concentrasse nas
suas tarefas espirituais e deixasse em segundo plano a preocupação com o poder,
a opulência e a dignidade terrena. Outras duas grandes realizações de Paulo III
foram a aprovação formal da nova ordem dos jesuítas ou Companhia de Jesus
(1540) e a convocação do Concílio de Trento (1545-1563).
Esse famoso Concílio afastou definitivamente qualquer
possibilidade de conciliação com os protestantes. Desde então, o catolicismo
conservador e militante tem sido designado como "tridentino" (de
Trento). Entre as suas muitas e importantes resoluções, o concílio reafirmou o
papel dominante dos papas na vida da Igreja. Outros destacados pontífices da
era de Trento foram Giovanni Pietro Caraffa (Paulo IV, 1555-1559) e Giovanni
Angelo Medici (Pio IV, 1559-1565). Este último tem seu nome ligado a uma
importante declaração de fé católica, o Credo de Pio IV ou Profissão de Fé
Tridentina, que deve ser afirmada por todos os convertidos ao catolicismo.
Esses papas reformadores contribuíram decisivamente para tornar a Igreja
Católica uma instituição mais coesa, organizada e disciplinada, bem como dotada
de uma clara identidade doutrinária. Um fato revelador é que por mais de
trezentos anos nenhum outro grande concílio seria convocado até o Vaticano I.
7.
Tensões entre Igreja e Estado
Nos séculos XVII e XVIII, as antigas ligações entre a Igreja
Católica e as autoridades seculares continuaram a criar problemas para os
papas. O Concílio de Trento contribuiu para a centralização do poder no papado
e isso não foi bem recebido em muitas partes da Europa devido ao crescente
nacionalismo e ao absolutismo real. A oposição ao conceito de uma Igreja
centralizada sob a autoridade papal recebeu o nome de "galicanismo",
por haver se manifestado mais fortemente na França, a antiga Gália. Assim,
somente em 1615 os decretos de Trento foram promulgados nesse país. Até mesmo
dentro da Igreja houve galicanos, isto é, aqueles que acreditavam que a
autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Por outro lado, os
defensores da autoridade suprema dos papas foram chamados de
"ultramontanistas", porque buscavam essa autoridade "além das
montanhas" (os Alpes). Outro golpe recebido pelo poder papal foi a
supressão da ordem dos jesuítas, um poderoso instrumento das políticas
pontifícias. Após ser expulsa de Portugal, Espanha e França, bem como de suas
colônias latino-americanas, a Sociedade de Jesus foi dissolvida em 1773 pelo
papa Clemente XIV. Assim, ironicamente, enquanto os papas insistiam na sua
jurisdição universal, eles estavam de fato perdendo poder e autoridade.
Um golpe ainda mais devastador contra o papado foi desferido pela
Revolução Francesa (1789). Desde o início houve um profundo conflito entre a
Igreja e o ideário republicano da Revolução. Desse modo, logo que tomou o
poder, o novo governo procurou enfraquecer o papado e suprimir a Igreja na
França. Dois papas da época sofreram bastante nas mãos do novo regime. O
primeiro foi Giovanni Angelo Braschi ou Pio VI (1775-1799). Em 1798, o exército
francês ocupou Roma, proclamou uma república e declarou que o papa não mais era
o governante temporal da cidade. Pio VI morreu no ano seguinte, virtualmente
como prisioneiro dos franceses. Seu sucessor, Barnaba Chiaramonte, eleito papa
Pio VII (1800-1823), inicialmente foi deixado em paz. Todavia, em 1808 Napoleão
tomou a cidade de Roma e o papa foi feito prisioneiro por vários anos, até a
queda do soberano francês em 1814. Pouco depois de retornar a Roma, Pio VII
restaurou a Sociedade de Jesus.
8. O mais
longo pontificado
A memória da Revolução Francesa reforçou o conservadorismo
político e teológico dos papas e sua consequente oposição às ideias
republicanas e democráticas que viriam a ser cada vez mais amplamente aceitas
no mundo ocidental. Essa atitude alcançou a sua expressão máxima no cardeal
Giovanni Maria Mastai-Ferretti, que, como papa Pio IX, teve o mais longo
pontificado da história (1846-1878). Pio IX enfrentou um novo problema que foi
o nacionalismo italiano e a luta pela unificação da Itália, até então
subdividida em muitos principados, entre os quais estavam os antigos estados
pontifícios. Um desses líderes nacionalistas foi Giuseppe Garibaldi, que se
casou com a brasileira Anita Garibaldi. Em 1870, as tropas do novo Reino da
Itália tomaram os estados papais e assim chegou ao fim o poder temporal dos
papas, que havia atingido o seu auge no pontificado de Inocêncio III, no século
XIII.
Ao mesmo tempo em que perdia o seu poder político, Pio IX acentuou
fortemente as suas prerrogativas na área religiosa. Sua ousadia tornou-se
patente quando, através da bula Ineffabilis, proclamou o dogma da imaculada
concepção de Maria (1854). Com isso, ele foi o primeiro pontífice a definir um
dogma por si mesmo, sem o apoio de um concílio. Dez anos depois, Pio promulgou
a encíclica Quanta cura (1864) e seu famoso apêndice, o Sílabo de Erros. Suas
oitenta proposições condenaram explicitamente, entre outras coisas, o
protestantismo, a maçonaria, a liberdade de consciência, a liberdade de culto,
a separação entre a Igreja e o Estado, a educação leiga e, em geral, o
progresso e a civilização moderna. Sua última grande realização foi o Concílio
Vaticano I (1870), o qual, através do decreto Pastor aeternus, proclamou o
controvertido dogma da infalibilidade papal. Essa infalibilidade ocorreria
quando o papa fala "ex cathedra", isto é, no exercício oficial do seu
cargo, definindo questões de fé e moral. Não por coincidência, isso ocorreu no
mesmo ano em que a Itália anexou os estados pontifícios.
9. Entrando
no século XX
A Igreja Católica e seus pontífices começaram lentamente a aceitar
o mundo moderno com o papa Leão XIII (1878-1903). Embora ainda marcadamente
conservador, a ponto de declarar na bula Immortale Dei que a democracia era
incompatível com a autoridade da Igreja, ele deu uma série de passos
construtivos no relacionamento com diversos governos europeus. Sua realização
mais notável foi a encíclica Rerum novarum (1891), na qual expressou o
pensamento social da Igreja e fez uma corajosa defesa dos direitos dos
trabalhadores no contexto da revolução industrial e do capitalismo em expansão.
Um período especialmente conturbado para a Igreja Católica e para
os seus líderes foi a época das duas guerras mundiais. Em sua repulsa do
comunismo anti-religioso e ateu, e em sua preocupação com a defesa dos
interesses da Igreja, os pontífices do período acabaram estabelecendo fortes
laços com regimes de extrema direita em diversos países da Europa. Em 1929, Pio
XI (1922-1939) assinou uma concordata com o ditador fascista Benito Mussolini,
o Tratado de Latrão, mediante a qual foi criado o Estado do Vaticano. Ele
também apoiou o regime ditatorial de Francisco Franco na Espanha. Mais
problemática foi a concordata com Adolf Hitler em 1933, vista por muitos
observadores internacionais como uma aprovação tácita do regime nazista.
Todavia, em 1937, Pio XI publicou a encíclica Mit brennender Sorge ("Com
viva ansiedade"), contendo severas críticas ao nacional-socialismo.
Seu secretário de estado, o cardeal Eugenio Pacelli, sucedeu-o no
trono pontifício como papa Pio XII (1939-1958), ao mesmo tempo em que eclodia a
II Guerra Mundial. Esse papa tem sido severamente criticado por seu silêncio
diante das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus, mesmo
convertidos ao catolicismo. No campo doutrinário, ele proclamou o dogma da
ascensão corporal de Maria (1950). Paradoxalmente, esse pontífice conservador
tomou iniciativas que contribuíram para as grandes mudanças que viriam a
acontecer na Igreja após a sua morte. Ele incentivou o uso dos novos métodos de
estudo bíblico através da encíclica Divino afflante Spiritu (1943), bem como
valorizou e estimulou as igrejas localizadas fora da Europa.
10. O
período pós-Vaticano II
Um dos períodos mais extraordinários da história da Igreja e do
papado teve início com a eleição do idoso cardeal Angelo Giuseppe Roncalli como
papa João XXIII (1958-1963). Convencido da necessidade de uma ampla atualização
(aggiornamento) da Igreja, ele convocou o Concílio Vaticano II, formalmente
instalado no dia 11 de outubro de 1962. Esse importante Concílio, que teve
expressiva participação de bispos do terceiro mundo, aprovou resoluções sem
precedentes nas áreas de renovação litúrgica, preocupação com os pobres e
diálogo interconfessional. As duas últimas preocupações já haviam sido
expressas respectivamente na encíclica Mater et Magistra e na criação do
Secretariado para a Promoção da Unidade Cristã. O papa seguinte, Giovanni
Battista Montini (Paulo VI, 1963-1978), embora mais contido, deu prosseguimento
ao Concílio Vaticano II, no interesse de "construir uma ponte entre a
Igreja e o mundo moderno". A "Constituição Pastoral sobre a Igreja no
Mundo Moderno" foi o documento mais longo já produzido por um concílio e
contrastou profundamente com certas ênfases do século anterior. Paulo VI também
publicou a controvertida encíclica Humanae vitae (1968), que proibiu aos
católicos o uso dos métodos de controle artificial da natalidade.
A eleição do último papa do século 20, em 1978, foi um
acontecimento não menos momentoso para a Igreja Católica e para o mundo
ocidental. O polonês João Paulo II (Karol Jozef Wojtyla) foi o primeiro papa
não-italiano desde o século XVI. Sua atuação corajosa contribuiu para a
derrocada do comunismo em sua pátria e no leste europeu. Em 1981, ele
sobreviveu a um grave atentado na Praça de São Pedro. Foi também o papa que
mais se deslocou pelo mundo afora, tendo feito cerca de uma centena de viagens
internacionais. Dotado de sólido preparo intelectual, publicou diversas
encíclicas abordando temas éticos, sociais e teológicos, tais como Redemptor
hominis (1979), Dives in misericordia (1980), Laborem exercens (1981),
Sollicitudo rei socialis (1988), Veritatis splendor (1993), Evangelium vitae
(1995), Ut unum sint (1995) e Fides et ratio (1998). Por outro lado,
representou um recuo conservador em relação aos seus predecessores, como ficou
evidenciado na sua atitude em relação à teologia da libertação, nas suas
interferências diretas em muitas organizações da Igreja e, em geral, no seu
entendimento exaltado da autoridade papal.
Conclusão
A instituição pontifícia teve recentemente um momento de grande
publicidade com a morte de João Paulo II e a eleição do seu sucessor, Bento
XVI, o influente cardeal alemão Joseph Ratzinger. A impressionante cobertura da
imprensa e as reações dos líderes políticos e da opinião pública internacional
atestam a força do catolicismo e dos seus pontífices. No seu conjunto, o papado
tem sido uma instituição predominantemente benéfica para a Igreja Católica,
dando-lhe um notável senso de unidade, propósito e identidade. Muitos
pronunciamentos papais sobre temas sociais e éticos têm sido altamente
relevantes em um mundo secularizado e materialista. Suas fraquezas históricas
têm sido o envolvimento político e um estilo de liderança nem sempre condizente
com as normas dadas por Cristo aos pastores do seu rebanho. Finalmente, é de se
lamentar que justamente essa instituição seja o maior obstáculo para uma maior
aproximação entre os cristãos, visto que a autoridade pontifícia é rejeitada
não somente pelos protestantes, mas pela Igreja oriental, que tem raízes tão
antigas e apostólicas quanto à Igreja latina.
Fonte: Alderi
Souza de Matos – www.mackenzie.br
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