Os primeiros cristãos
– entre eles Paulo – não criam que o tempo e o lugar do nascimento de Jesus
foram deixados ao acaso. Pelo contrário, eles viam a mão de Deus preparando o
advento de Jesus em todos os acontecimentos anteriores ao Natal e em todas as
circunstâncias históricas que o rodearam. O mesmo pode ser dito do nascimento
da igreja, que é o resultado da obra de Jesus. Deus havia preparado o caminho
para que os discípulos, uma vez recebido o poder do Espírito Santo, pudessem
ser suas testemunhas “em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, até os
confins da terra” (At 1.8).
Portanto, a igreja
nunca foi uma comunidade desprovida de todo contato com o mundo exterior. Os
primeiros cristãos eram judeus do século I, e como judeus escutaram e receberam
o evangelho. Depois, a nova fé foi se propagando, tanto entre os judeus que
viviam fora da Palestina como entre os gentios que viviam no Império Romano e
ainda fora dele. Em consequência, a fim de compreender a história da igreja em
seus primeiros séculos, devemos primeiro observar o mundo em que a igreja se
desenvolveu.
O Judaísmo na Palestina
Palestina, a região
onde o cristianismo deu os primeiros passos, foi sempre uma terra sofrida. Em
tempos antigos, isso se deveu principalmente a sua posição geográfica, que a
colocava na encruzilhada das grandes rotas comerciais que uniam o Egito à
Mesopotâmia, e a Arábia à Ásia Menor. Por toda história do Antigo Testamento,
essa estreita faixa de terreno se viu cobiçada e invadida, umas vezes pelo Egito,
e outras pelos grandes impérios que surgiram na região da Mesopotâmia e Pérsia.
No século IV a.C., um novo contendente entrou na arena: Alexandre e suas hostes
macedônicas. Ao derrotar os persas, Alexandre se fez dono da Palestina. Ele
morreu em 323 a.C., seguindo-se então longos anos de instabilidade política. A
dinastia dos Ptolomeus, fundada por um dos generais de Alexandre, apoderou-se
do Egito, enquanto os Selêucidas, de semelhante origem, dominaram a Síria. De
novo, a Palestina resultou ser a maçã da discórdia nas lutas entre Ptolomeus e
Selêucidas.
As conquistas de
Alexandre tiveram uma base ideológica. O propósito de Alexandre não era
simplesmente conquistar o mundo, mas unir toda a humanidade sob uma mesma
civilização de tonalidade marcadamente grega. O resultado disso foi o
helenismo, que tendia a combinar elementos puramente gregos com outros tomados
das diversas civilizações conquistadas. Ainda que o caráter preciso do
helenismo tenha variado de região em região, em termos gerais foi a bacia oriental
do Mediterrâneo que lhe deu uma unidade que serviu primeiro à expansão do
Império Romano e depois à pregação do evangelho.
Mas o helenismo não
era uma bênção para os judeus. Visto que parte da ideologia helenista consistia
em equiparar e fundir os deuses de diversos povos, os judeus viam no helenismo
uma ameaça à fé no Deus único de Israel. Por isso, a história da Palestina,
desde a conquista de Alexandre até a destruição de Jerusalém em 70 d.C., pode
se ver como um conflito constante entre as pressões do helenismo, por um lado,
e a fidelidade dos judeus a seu Deus e suas tradições, por outra.
O ponto culminante
dessa luta foi a rebelião dos Macabeus. Primeiro, o sacerdote Matias e, depois,
três de seus filhos, Jônatas, Judas e Simão, rebelaram-se contra o helenismo
dos Selêucidas, que pretendiam impor deuses pagãos entre os judeus. O movimento
teve algum êxito. Mas já João Hircano, o filho de Simeão Macabeu, começou a se
amoldar aos costumes dos povos circunvizinhos e a favorecer as tendências helenistas.
Quando alguns dos judeus mais austeros se opuseram a essa política,
deflagrou-se a perseguição. Por fim, em 63 a.C., o romano Pompeu conquistou o
país e depôs o últimos dos Macabeus, Aristóbulo II.
A política dos
romanos era, em geral, tolerante em relação à religião e aos costumes dos povos
conquistados. Pouco tempo depois da deposição de Aristóbulo, os romanos
devolveram aos descendentes dos Macabeus certa medida de autoridade, dando-lhes
os títulos de sumo sacerdote e etnarca. Herodes nomeado rei da Judéia pelos
romanos em 40 a.C., foi o último governante com certa ascendência macabeia,
pois sua esposa era dessa linhagem.
Mas até a própria
tolerância dos romanos não podia compreender a obstinação dos judeus, que
insistiam em render culto somente a seu Deus e se rebelavam ante a menor ameaça
contra a sua fé. Herodes fez todo o possível para introduzir o helenismo no
país. Com esse propósito, fez construir templos em honra a Roma e a Augusto em
Samaria e Cesareia. Porém, quando se atreveu a colocar uma águia de ouro na
entrada do Templo, os judeus se sublevaram e Herodes teve que recorrer à
violência. Seus sucessores seguiram a mesma política helenizante, fazendo
construir novas cidades de estilo helenista e trazendo gentios para viverem
nelas.
Por essa razão, as
rebeliões sucederam quase initerruptamente. Jesus era menino quando os judeus
se repelaram contra o etnarca Arquelau, que teve que recorrer às tropas
romanas. Essas tropas, sob o comando do general Varo, destruíram a cidade
Séforis, capital da Galiléia e vizinha de Nazaré, e crucificaram ali mil
judeus. É a essa rebelião que se refere Gamaliel ao diz que, “nos dias do
recenseamento, surgiu Judas, o Galileu, e desencaminhou muitos que o seguiram”
(At 5.37). O partido dos Zelotes, que se opuseram tenazmente ao regime romano,
continuou existindo depois das atrocidades de Varo, e cumpriu papel importante
na grande rebelião que irrompeu em 66 d.C. Essa rebelião foi, talvez, a mais
violenta de todas, e conduziu em suas consequências, à destruição de Jerusalém
em 70 d.C., quando o general – e depois imperador – Tito conquistou a cidade e
derrubou o Templo.
Em meio a tais lutas
e tentações, não é de se estranhar que o judaísmo se tenha tornado cada vez
mais legalista. Era necessário que o povo tivesse diretrizes claras acerca de
qual deveria ser sua conduta em diversas circunstâncias. Os preceitos
detalhados dos fariseus não tinham o propósito de fomentar religião puramente
externa – ainda que às vezes tenham tido esse resultado –, mas, antes,
procuravam aplicar a Lei às circunstâncias que o povo vivia.
Os fariseus eram o
partido do povo, que não desfrutava das vantagens materiais acarretadas pelo
regime romano e helenista. Para eles, o importante era assegurar-se de cumprir
a Lei, mesmo nos tempos difíceis que estavam vivendo. Ademais, os fariseus
criam em algumas doutrinas que não tinham apoio nas mais antigas tradições dos
judeus, como a ressurreição e a existência de anjos.
Os saduceus, por sua
parte, eram o partido da aristocracia, cujos interesses os levavam a colaborar
com o regime romano. Visto que o sumo sacerdote pertencia geralmente a essa
classe social, o culto do Templo ocupava para os saduceus a posição central que
a Lei tinha para os fariseus. Além disso, aristocratas e conservadores como
eram, os saduceus rejeitavam as doutrinas da ressurreição e a da existência de
anjos, que, segundo eles, eram meras inovações.
Portanto, devemos
cuidar de não exagerar a oposição de Jesus e dos primeiros cristãos ao partido
dos fariseus. De fato, quase todos eles estavam mais perto dos fariseus que dos
saduceus. A razão pela qual Jesus os critica não é então por terem sido maus
judeus, mas que, em seu afã de cumprir a Lei ao pé da letra, esqueciam-se às
vezes dos seres humanos a quem a Lei fora dada.
Além desses partidos,
que ocupavam o centro da cena religiosa, havia outras seitas e outros bandos no
judaísmo do século I. Já mencionamos os zelotes. Os essênios, a quem muitos
autores atribuem os famosos “rolos do mar Morto”, eram um grupo com ideias puristas,
que se apartava de todo contato com o mundo dos gentios, a fim de manter sua
pureza ritual. Segundo o historiador Josefo, esses essênios sustentavam, além
das doutrinas tradicionais do judaísmo, certas doutrinas secretas que lhes
estavam vedadas revelar a quem não fosse membro da seita.
Por outra parte, toda
essa diversidade de tendências, partidos e seitas não há de ofuscar os pontos
fundamentais que todos os judeus sustentavam em comum: o monoteísmo ético e a
esperança escatológica.
O monoteísmo ético
sustentava que há um só Deus e que este Deus requer, além do culto apropriado,
a justiça entre os seres humanos. Os diversos partidos podiam estar em
desacordo com respeito ao que essa justiça queria dizer em termos concretos,
mas todos concordavam quanto à necessidade de honrar ao Deus único com a vida
toda.
A esperança
escatológica era o outro ponto comum da fé de Israel. Todos, dos saduceus aos
zelotes, guardavam a esperança messiânica e criam firmemente que chegaria o dia
de Deus interferir na história para restaurar Israel e cumprir suas promessas
de um Reino de paz e justiça. Alguns criam que seu dever estava em acelerar a
chegada desse dia recorrendo às armas. Outros diziam que tais coisas deviam ser
deixadas exclusivamente nas mãos de Deus. Mas todos concordavam em sua visão
dirigida em direção ao futuro, quando se cumpririam as promessas de Deus.
De todos esses
grupos, o mais apto para sobreviver depois da destruição do Templo era o dos
fariseus. Efetivamente, essa seita tinha suas raízes na época do exílio, quando
os judeus não podiam chegar ao Templo para adorar, e, portanto, sua fé se
centralizava na Lei. Durante os últimos séculos antes do advento de Jesus, o
número de judeus que viviam em terras longínquas aumentava de forma constante.
Tais pessoas, que não podiam visitar o Templo senão em raras ocasiões, viam-se
obrigadas a centralizar a sua fé na Lei e não no Templo. Em 70 d.C., a
destruição de Jerusalém deu o golpe de misericórdia no partido dos saduceus.
Portanto, o judaísmo que o cristianismo conheceu através de quase toda a sua
história vem da tradição farisaica, assim como o judaísmo que existe em nossos
dias.
O Judaísmo da Dispersão
Como já assinalamos,
houve um número cada vez maior de judeus que viviam fora da Palestina durante
os séculos que precederam o advento de Jesus. Alguns desses judeus eram
descendentes dos que haviam ido ao exílio na Babilônia; nessa cidade, portanto,
como em toda a região da Mesopotâmia e Pérsia, havia fortes contingentes
judeus. No século I as colônias judaicas em Roma e em Alexandria eram bem
numerosas. Em quase todas as cidades do Mediterrâneo oriental havia pelo menos
uma sinagoga. No Egito, chegou-se até a construir um templo por volta do século
VII a.C. na cidade de Elefantina, e houve-se outro no Delta do Nilo no século
II a.C. Mas em geral esse judeus, chamados de “da Dispersão” ou da “Diáspora”,
não construíram templos nos quais podiam oferecer sacrifícios, mas antes
sinagogas nas quais estudavam as Escrituras.
O judaísmo da
Diáspora é de suma importância para a história da igreja cristã, pois foi
através dele, segundo veremos no próximo capítulo, que a nova fé se estendeu
mais rapidamente pelo Império Romano. Além disso, esse judaísmo proporcionou à
igreja a propaganda religiosa. Esse judaísmo se distinguia de seu congênere na
Palestina, principalmente por duas características: seu uso do idioma grego e
seu contato inevitavelmente maior com a cultura helenista.
Na Palestina do
século I e em toda a região do oriente desse país, havia muitos judeus que já
não usavam o antigo idioma hebreu, mas o aramaico. Os judeus que se achavam
dispersos por todo o restante do Império Romano falavam o grego. Depois das
conquistas de Alexandre, o grego veio a ser a língua franca da bacia oriental
do Mediterrâneo. Judeus, egípcios, cipriotas e até os romanos utilizavam o
grego para comunicar-se entre si. Em algumas regiões – especialmente no Egito
–, os judeus perderam o uso da língua hebraica, e foi necessário traduzir suas
Escrituras ao grego.
Essa versão grega do Antigo
Testamento recebeu o nome de “Septuaginta”, que se abrevia frequentemente
mediante o número romano LXX. Esse nome – e número – provém de uma antiga lenda
segundo a qual Ptolomeu II Filadelfo, rei do Egito, ordenou a 72 anciãos
hebreus que traduzissem a Bíblia independentemente, e todos eles produziram
trabalhos idênticos entre si. Ao que parece, o propósito dessa lenda era
garantir a autoridade dessa versão, que foi, de fato, produzida ao longo de
vários séculos, por tradutores com distintos critérios, de modo que algumas
proporções excessivamente literais, enquanto outras tomam liberdades indevidas
com o texto.
Em todo o caso, a
importância da Septuaginta foi enorme para a igreja cristã primitiva. Essa é a
Bíblia que a maioria dos autores do Novo Testamento cita, e exerceu influência
indubitável sobre a formação do vocabulário cristão dos primeiros séculos.
Ademais, quando aqueles primeiros crentes se esparramaram por todo o Império
com a mensagem do evangelho, eles encontraram na Septuaginta instrumento útil
para sua propaganda. De fato, o uso que os cristãos fizeram da Septuaginta foi
tal e tão efetivos que os judeus se viram obrigados a produzir novas versões,
como a de Áquila, e a deixar os cristãos na posse da Septuaginta.
A outra marca
distinta do judaísmo da Dispersão foi o seu inevitável contato com a cultura
helenista. Em certo sentido, poderia se dizer que a Septuaginta é também o
resultado dessa situação. Em todo o caso, fica claro que os judeus da Dispersão
não podiam se esquivar do contato com os gentios, como podiam fazer em certa
medida seus correligionários da Palestina. Os judeus da Dispersão viam-se
obrigados, em consequência, a defender sua fé a cada passo diante daquelas
pessoas da cultura helenista, para quem a fé de Israel era ridícula, antiquada
ou ininteligível.
Diante dessa
situação, e especialmente na cidade de Alexandria, surgiu entre os judeus um
movimento que tratava de mostrar a compatibilidade entre o melhor da cultura
helenista e a região hebraica. Já no século III a.C., Demétrio narrou a
história dos reis de Judá seguindo os padrões da historiografia pagã. Mas foi
na pessoa de Filo de Alexandria, contemporâneo de Jesus, que esse movimento
alcançou o ápice.
Visto que os
argumentos de Filo – ou outros parecidos – foram utilizados depois por alguns
cristãos na própria cidade de Alexandria, vale a pena resumi-los aqui. O que
Filo intenta fazer é mostrar a compatibilidade entre a filosofia platônica e as
Escrituras hebraicas. Segundo ele, já que os filósofos eram pessoas cultas, e
as Escrituras hebraicas são anteriores a eles, é de supor que qualquer
concordância entre ambos se deve a que os gregos copiaram dos judeus, e não
vice-versa. Então, Filo procede a mostrar essa concordância interpretando o
Antigo Testamento como uma série de alegorias que apontavam em direção às
mesmas verdades eternas a que os filósofos se referem de maneira mais literal.
O Deus de Filo é
absolutamente transcendente e imutável, no estilo de “Uno inefável” dos
platônicos. Portanto, para se relacionar com este mundo de realidades
transitórias e imutáveis, esse Deus faz uso de um ser intermediário, a quem
Filo dá o nome de Logos (isto é, Verbo ou Razão). Esse Logos, além de ser um
intermediário entre Deus e a criação, é a razão que existe em todo o Universo,
e da qual a mente humana participa. Em outras palavras, é esse Logos que faz o
Universo ser compreendido pela mente humana. Alguns pensadores cristãos
adotaram essas ideias propostas por Filo, com todas as suas vantagens e seus
perigos.
Assim, por sua dispersão
pelo mundo romano, por sua tradução da Bíblia e ainda por seus intentos de
dialogar com a cultura helenista, o judaísmo havia preparado o caminho para o
advento e a disseminação da fé cristã.
O Mundo Greco-Romano
Entretanto, nessa disseminação,
a nova fé teve de abrir caminho através de situações políticas e culturais que
às vezes lhe facilitaram a passagem, e outras lhe serviram de obstáculo. A fim
de compreender a vida cristã nesses primeiros séculos, devemos nos deter e
expor essas circunstâncias políticas e culturais, ainda que em breve linhas.
O Império Romano
havia dado à bacia do Mediterrâneo uma unidade política nunca antes vista.
Ainda que em cada região alguns velhos costumes e leis se mantivessem, a
política do Império foi fomentar a maior uniformidade possível sem fazer
excessiva violência aos costumes de cada região. Essa havia sido antes também a
política de Alexandre. Em ambos os casos o êxito foi notável, pois pouco se foi
criando uma base comum que perdura até nossos dias. Essa base comum, tanto
política como culturalmente, foi de enorme importância para o cristianismo do
primeiro século.
A unidade da bacia do
Mediterrâneo permitiu aos primeiros cristãos viajar de um lugar a outro sem
temor de se verem envoltos em guerras ou assaltos. De fato, ao ler acerca das
viagens de Paulo, vemos que o grande perigo da navegação nessa época era o mau
tempo. Uns séculos antes, os piratas que infestavam o Mediterrâneo eram muito
mais terríveis do que qualquer tempestade. Os caminhos romanos, que uniam até
as mais distantes províncias, alguns dos quais ainda existem, não foram alheios
aos pés dos cristãos que iam de um lugar ao outro, levando a mensagem da
redenção em Jesus Cristo.
Visto que o comércio
florescia, os povos iam de um lugar para o outro, e assim o cristianismo chegou
frequentemente a alguma nova região, não levado por missionários ou pregadores
itinerantes, mas por mercadores, escravos e outras pessoas que se viam
obrigadas a viajar por diversas razões. Nesse sentido, as condições políticas
da época foram favoráveis à disseminação da nova fé.
Mas também houve
outros aspectos dessa situação que serviram de desafio a ameaça aos primeiros
cristãos. Já que o Império intentava alcançar a maior uniformidade possível
entre seus súditos de diversas origens, parte da política imperial consistia em
fomentar a uniformidade religiosa. Isto se fazia mediante o sincretismo e o
culto ao imperador.
O sincretismo, que
consiste na mistura indiscriminada de religiões, foi característica da bacia do
Mediterrâneo a partir do século III a.C. Dentro de certos limites, Roma o
incentivou, pois o Império tinha interesse em que seus diversos súditos
pensassem que, embora seus deuses tivessem diferentes nomes e atributos, no
final de contas eram todos os mesmos deuses; muitos outros provenientes das
diversas regiões foram sendo acrescentados ao panteão romano. (“Panteão” quer
dizer precisamente “templo de todos os deuses”.) Pelos mesmos caminhos pelos
quais transitaram os mercadores e missionários cristãos, transitavam também
pessoas das mais variadas religiões, e todas essas religiões se entremesclavam
e se fundiam nas praças e nos foros das cidades. O sincretismo era a forma
religiosa da época.
Em tal ambiente,
tanto judeus como cristãos pareciam ser pessoas intransigentes, que insistiam
em seu Deus único e diferente de todos os demais deuses. Por essa razão, muitos
viam no judaísmo e no cristianismo um cisto que devia ser extirpado da
sociedade romana. Muitas vezes essas perseguições tinham características
políticas. O culto ao imperador era um dos meios que Roma utilizava para
fomentar a unidade e a lealdade de seu império. Negar-se a render esse culto
era visto como sinal de traição ou, pelo menos, de deslealdade. Logo, não são
poucos os casos que fica patente que, ao mesmo tempo em que um mártir morria
por sua fé, quem o condenava o fazia levado por sentimentos de lealdade
política.
Por outro lado, o
sincretismo da época também se manifestava no que os historiadores de hoje
chamam de “religiões de mistério”, ou simplesmente “mistérios”. Essas religiões
não centralizavam sua fé nos velhos deuses do Olímpo – Zeus, Posídon, Afrodite
etc. –, mas em outros deuses de
caráter pessoal. Nos séculos anteriores, antes que se espalhasse o espírito
sincretista e cosmopolita, cada indivíduo era devoto aos deuses do país em que
havia nascido. Mas agora, em meio à confusão criada pelas conquistas de
Alexandre e de Roma, cada pessoa tinha de decidir a que deuses prestariam sua
devoção. Cada um desses deuses dos “mistérios” tinha seus próprios devotos:
todos aqueles que haviam sido iniciados.
Em geral, cada uma
dessas religiões baseava-se em um mito acerca das origens do mundo, ou da história
do deus em questão. Do Egito provinha o mito de Ísis e Osíris, segundo o qual o
deus Seth havia matado e esquartejado Osíris, e depois havia espalhado seus
membros por todo o Egito. Ísis, a esposa de Osíris, os havia recolhido e dado
nova vida a Osíris. Mas agora os órgãos genitais de Osíris haviam caído no
Nilo, e por essa razão é que o Nilo é a fonte de fertilidade para todo o Egito.
Também por essa razão, alguns dos devotos mais fervorosos desse culto se
mutilavam a si mesmos, cortando-se os testículos e oferecendo-os em sacrifício.
Entre os soldados,
era muito popular o culto Mitra, deus de
origem persa, cujos mitos incluíam uma série de combates contra o Sol e contra
um touro de caráter mitológico. No Grécia, existiam desde os tempos imemoriais
os mistérios de Elêusis, perto de Atenas. Os mistérios de Átis e Cibele incluíam
ritual de iniciação chamado “taurobóleo”, no qual se matava um touro e se
banhava ao neófito com seu sangue. Dado o caráter sincretista de todos esses
cultos, logo uns se misturavam com outros, até o ponto de hoje se tornar difícil
distinguir as características ou as práticas de um deles em particular.
Além disso, esses
deuses não eram zelosos entre si, como o Deus dos judeus e dos cristãos;
portanto, houve quem se dedicasse a colecionar mistérios, fazendo-se iniciar
nesses cultos, um após o outro. Todas essas tendências sincretistas – em que os
velhos deuses se entrelaçavam com as religiões de mistério e com o culto ao imperador
– apresentavam forte desafio ao cristianismo nascente. Já que os cristãos se
negavam a participar de tudo isso, frequentemente eram acusados de
incredulidade e ateísmo.
Diante de tais acusações,
os cristãos podiam recorrer a certos aspectos da cultura da época que pareciam
prestar-lhes apoio. Mas já podemos indicar que existiram duas tradições filosóficas
em que os cristãos encontraram robusto arsenal para a defesa de sua fé. Uma
delas foi a tradição platônica; a outra, o estoicismo.
O mestre de Platão, Sócrates,
havia sido condenado a morrer bebendo cicuta porque ele era considerado incrédulo
e corruptor da juventude ateniense. Platão havia escrito vários diálogos em sua
defesa, e, já no século I de nossa era, Sócrates era tido como um dos homens
mais sábios e mias justos da antiguidade. Ora, Sócrates, Platão e toda a tradição
de que ambos eram parte tinham criticado os deuses pagãos, dizendo que eram
criação humana, e que segundo os mitos clássicos eram mais perversos do que os
seres humanos. Acima de tudo, Platão falava de um supremo, imutável, perfeito,
que era a suprema bondade e beleza. Além disso, tanto Sócrates como Platão
criam na imortalidade da alma, e, portanto, na vida depois da morte. Platão
afirmava que além deste mundo sensível e passageiro havia outro de realidades
invisíveis e permanentes. Tudo isso foi de grande valor e atratividade para
aqueles primeiros cristãos que se viam perseguidos e acusados de serem
ignorantes e ingênuos. Por essas razões, a filosofia platônica exerceu um
influxo sobre o pensamento cristão que perdura até hoje.
Algo semelhante
sucedeu com o estoicismo. Essa escola filosófica – algo superior ao platonismo –
ensinava doutrinas de alto caráter moral. Segundo os estoicos, há uma lei
natural impressa em todo o universo e na razão humana, e essa lei nos diz como
devemos nos comportar. Se alguns não a veem e não a seguem, isto se deve ao
fato de que são néscios, pois quem é verdadeiramente sábio conhece essa lei e
lhe obedece. Ademais, já que nossas paixões lutam contra nossa razão, e tratam
de dominar nossa vida, a meta do sábio é fazer que sua razão domine toda paixão,
até o ponto de não senti-la. Esse estado de não sentir paixão é a “apatia”, e
nisto consiste a perfeição moral segundo os estoicos.
Também nesse caso,
podemos imaginar o atrativo dessa doutrina para os cristãos, que se viam
obrigados a enfrentar repetidamente os costumes corruptos de sua época, e a criticá-los.
Já que os estoicos haviam feito o mesmo, em suas ideias e escritos, os cristãos
encontravam apoio para sua defesa e propaganda. Igualmente ao platonismo, isto
acarretava o perigo de que se chegasse a confundir a fé cristã com essas
doutrinas filosóficas, e que assim se perdesse algo do caráter único do
evangelho. Não faltaram aqueles que, em um aspecto ou outro, sucumbissem ante
essa tentação. Mas isso não há de ocultar-nos o grande valor que essas
doutrinas tiveram na primeira expansão do cristianismo.
Segundo o apóstolo
Paulo, o cristianismo penetrou o mundo quando veio “a plenitude dos tempos”. Talvez
alguém entendesse isto no sentido de que Deus facilitaria o caminho àqueles
primeiros cristãos. Não há dúvidas de que muito do que estava acontecendo no século
I facilitou o avanço da nova fé, mas também é certo que esses mesmos
acontecimentos colocavam diante da igreja desafios difíceis que exigiam enorme
valor e audácia.
A “plenitude dos
tempos” não quer dizer que o mundo estivesse pronto para se tornar cristão,
como fruta madura pronta para cair da árvore, mas quer dizer que, nos desígnios
inescrutáveis de Deus, havia chegado o momento de enviar o seu Filho ao mundo
para sofrer morte de cruz, e de espalhar os discípulos por esse mesmo mundo, a
fim de que eles também dessem um testemunho custoso de sua fé no Crucificado.